No
chão, junto à cadeira de Heloísa, uma
poça de sangue. Coitada! Diante de tamanho susto, ficara menstruada.
Abracei
sua cabeça, beijei sua fronte. Saí dali
sem olhar para trás: meus neurônios, como numa dança frenética, jogavam com
trilhões de informações, enquanto o sistema neuro-vegetativo respondia,
estupidamente, com uma desenfreada taquicardia.
Urgia pensar com serenidade.
Tudo
estava em jogo. A organização, meus
filhos, amigos que nos frequentavam inocentemente, meus alunos, meus
professores, anos de trabalho...
Sozinha,
dramaticamente sozinha, peguei o primeiro ônibus que passou. De ônibus em ônibus, Coelho Neto ia ficando
longe. Tão longe como a dor da separação
de um amigo, tão longe como os sonhos da primeira infância, longe como a
angústia do irreparável. Tão perto
ontem, tão distante agora, do bairro habitado e cantado por Machado de Assis:
seu personagem, Brás Cubas passava pelas minhas lembranças:
...“ Eu trato de anexar à minha filosofia uma parte dogmática e
litúrgica. O humanitismo há de ser
também uma religião, a do futuro, a única verdadeira.”...
Lamartine
Babo fazia um delicado verso, naquele cantinho gostoso do “Prato de Barro”.
“ Mesmo sem ser Dirceu, gosto também de Marília”, dissera um dia,
enamorado como ele só. Como seria o
início do verso? Faria uma operação
plástica no meu enorme nariz, ou cantaria como Juca Chaves, justificando o
que achava uma feiúra? Naquele momento, desejei ter Marcello e
Eduardo bem perto, na Avenida Brasil, bem ao alcance das minhas mãos...
Madureira
ia passando diante dos meus olhos.
Conseguiria
Israel passar para a oitava série? Seus
pais sempre tão preocupados com o filho temporão, criado sem nenhuma defesa,
habituados à segurança da minha presença. E as crianças da favela de Acarí? E
as do IAPTEC?
Durante
anos, fui uma referência e um amparo. O dentista gratuito, as amostras de vitaminas,
distribuídas periodicamente entre todos, as visitas aos casebres insalubres, as
bolsas de estudo, a sopa para os famintos, os enterros dos não chegaram a
conhecer os por-de-sol,
tudo fazia parte do meu cotidiano... Antônio,
tão franzino... Tão estupidamente pobre.
Vanderson está em plena adolescência.
Insuportável, dizem todos. Muito
querido, argumento.
Os
adolescentes são fantásticos. Fortes
como o mar, velozes como o vento, sensíveis como os rouxinóis, senhores de tudo
e do nada, desbravadores, conquistadores.
Meu
deus, como o Rio é grande! Quantos
quilômetros havia percorrido nestes últimos anos! Pego um ônibus pra Tijuca, parece uma
preguiça. Nunca vi uma preguiça, mas
dizem que caminha tão lentamente, que leva dias para subir numa árvore. Serão feias ou bonitas? Pouco importa, são preguiças. Necessito de velocidade, muita velocidade.
Retorno à situação real.
-
Táxi! Táxi! Botafogo, por favor.
-
Onde?
-
Botafogo. Praia de Botafogo.
A
baía está linda, aqui não chove. Em
frente, o Pão de Açúcar. Lindo,
imponente. A esta hora, talvez, apinhado
de turistas, deslumbrados com a beleza da cidade. Nem havia percebido o calor
que faz. Que bom seria uma praia! Adoro praia e pimenta!
-
Aqui, por favor. Em frente ao cinema.
Cruzo
a avenida rapidamente. Se faz tarde. Outro percurso.
-
Táxi!!! Laranjeiras, por favor. Rua General Glicério.
Quando
me dei conta, estava trocando de roupa. Mamadeiras, fraldas, leite, roupinhas,
sapatinhos, tudo enfiado desordenadamente dentro da bolsa.
-
Estou indo embora, ouviu, Dona Leontina?
-
Pra onde? - perguntou .
Quase
correndo, chego à calçada com Marcello e Eduardo nos braços. Dois e três aninhos de vivência. Marcello é esperto, muito vivo, entende tudo,
menos este corre-corre. Eduardo sorri, adora uma rua.
Dona
Leontina olha assustada, sem entender nada.
-
Seguramente é briga de marido. - parece me dizer.
- Feche bem antes de sair. Não esqueça nada aberto. O gás, a luz...
- Sim, pode deixar.
- Ligue antes de vir amanhã. Se o Fausto aparecer, diga
que fui embora, está bem?
A
pobre, amedrontada, balançava a cabeça num perplexo sim.
Como
num passe de mágica, surge Carlos. Nosso querido e adorado companheiro. Há um
ano entrara na clandestinidade, e viera morar conosco. Um mineiro com jeito de
Severino, responsável, alegre, brincalhão, adorado pelas crianças, paparicado
por Dona Leontina, companheiro ímpar pela vida afora, faz parte do grupo dos imprescindíveis. Tantas outras vezes,
incluindo o presente, Carlos apareceria nos momentos mais críticos, para
vivê-los ou nos tirar deles.
As
palavras deram lugar ao silêncio. Entrei
no fusquinha ainda cheirando à fábrica quando o porteiro, ofegante, disparou:-
- Seu
Carlos! Seu Carlos! Por favor, preciso lhe falar... o relógio da
rifa saiu para o senhor! Espere que vou pegá-lo.
- Não precisa, Seu José. Pego depois, mais tarde, está bem assim?
-
Não esqueça, ele toca aquela musiquinha crássica do Shube.
-
Não vou esquecer não, seu José.
Acho
que o Carlos esqueceu, sim, o famoso relógio de mesa que tocava a serenata de
Shubert. Nunca mais falamos dele.
Quatro
quarteirões depois, Carlos perguntou timidamente:
-
Que aconteceu?
-
Pegaram o mimeógrafo e foram me prender.
-
Como?
-Pegaram
o mimeógrafo na casa do Liszt em Niterói.
-
Mas, esse aparelho caiu em novembro.
Estamos em março. Estranho, não!?
-
Muito. Se não fosse aquele recibo de
venda, que inventamos, agora estaria frita.
-
Você é uma guria de sorte. Muita sorte.
– concluiu, acariciando meu rosto com ternura.
-
Pra onde vamos? As crianças precisam
comer, tomar banho e dormir.
-
Vamos localizar o Fausto, e decidiremos para onde ir.
Queria
chorar. Chorar tudo. Passado, presente, futuro. Pelas coisas
alegres, pelas mais tristes. Chorar de
amor, de ódio, de ternura, de paixão. De
impotência, de força, de saudade, de presença.
Chorar.
Não
podia. Marcello e Eduardo sequer
deveriam sentir qualquer diferença. A
mudança de fato já seria forte demais.
Os berços, os brinquedos, a comidinha na hora certa. O silêncio para um sono tranquilo. A higiene que evitaria doenças, até agora
ausentes de suas vidas. Não. Não podia derramar uma lágrima, nem que fosse
por um bocejo. Não tinha este
direito. Eles deveriam passar incólumes
por tudo. Um não para as doenças, para os sofrimentos. Um não para o não. O não seria a última palavra que eles
aprenderiam, se dependesse de mim.
Até agora tinha funcionado perfeitamente. As primeiras palavras tinham sido “ áagguua ,
poommbo”. Duas expressões de
liberdade. Não. Faria qualquer coisa para não apagar aqueles
sorrisos.
-
Temos que sair do Rio imediatamente.
- Vamos embora! Vamos para Angustura
- lembrou Carlos. Sua irmã está lá. Com certeza, vai nos ajudar nestes primeiros
dias.
Angustura,
pequena e linda vila centenária, gloriosa no auge do cultivo do café, encravada
num pedaço mágico de Minas. Cenário da
minha primeira perda, dura, sofrida por toda a vida - pai e mãe de uma única vez. Um para a morte... outro para a vida...
Palco
do meu primeiro toque de mãos me arrepiando toda, despertando-me no roçar dos
dedos, o primeiro amor; das travessuras, da descoberta das desigualdades e
mentiras, dos falsos milagres para cura da leucemia.... Lugar
das corridas a cavalo, dos banhos de rio, das rosas verdes, do racismo tirando
vidas...
Aldeia
das preces para os pracinhas na Itália, lutando contra o nazismo; dos mendigos
que todos os sábados chegavam ao pátio de minha avó em busca de um prato de
comida, despertando-me para as injustiças sociais..
Referência
da vovó amada para todo o sempre. Falante, rechonchuda, sábia.
-
Você parece com seu pai, sabia -
resmungava. Sempre dando trela
pra Sá Lídia e Biana, essas
mendigas piolhentas e imundas.
- Não se case com este rapaz, minha filha! Ele não a fará feliz, dissera de uma feita,
entre um lapso e outro de sua esclerose avançada.
-
Pronto, está resolvido. Lá é calmo, as
crianças gostam dela e não vão sofrer
tanto, você não acha?
Nada
definitivo. Tudo passageiro. Uma semana.
Dez dias, talvez. Nada mais que
dez dias. Você vai ver - falava Carlos,
sem parar .
Logo,
logo, arranjamos tudo. Logo. Logo tudo volta ao normal.
Carlos
falava e falava, atropelando as palavras, enquanto lágrimas teimosas umedeciam
o bolso da sua camisa.
Era
noite quando deixamos a Rio-Bahia, para percorrer os 8 km que nos levam à vila.
Helenice
olhou sem entender a visita. Meio da
semana. Carlos e as crianças. Sem
aviso. Sem chamadas. Sem respostas, carregamos os pimpolhos nos
braços. Entramos pela primeira vez,
sorrateiramente, na centenária casa.
Nos abraçamos e decidimos que assim seria. Sem perguntas, sem respostas. Em silêncio tinha que ser.
Bem
pronto viria buscá-los, juro que viria.
No regresso, chorei.
A
madrugada esbarrava no amanhecer quando regressamos ao Rio. Muitas, tantas madrugadas faríamos esse
caminho de ida e volta, para vê-los dormindo, esparramados na cama de
casal. Uma perna aqui, um braço jogado
na carinha do outro. A respiração suave
e doce. Um sorriso furtivo, anunciando
um sonho feliz, eram alavancas para suportar mais um dia de não saber quando,
nem onde.
Quinze
dias se passaram entre as estradas de Minas e as frias madrugadas de Santa
Teresa. O vestido verde de veludo,
colocado às pressas na saída, continuava sendo o único disponível, a calcinha
lavada pelas madrugadas, muitas vezes colocada ainda úmida pela manhã, marcavam
discretas a gravidade da situação.
De
dia, reuniões à procura de definições e saídas;
caminhadas sem rumo, um único sanduíche para três, outras vezes para
quatro. De noite, um porão cheio de morcegos; na outra noite, um frio quarto,
com a cama pequena demais para dois.
Copacabana,
cantada em verso e prosa, eternizada na canção, é uma menina ousada de cabelos
ao vento durante a estada do sol, mas mulher misteriosa no burburinho da noite.
As
ondas beijam suas areias, num vai e vem infinito de carícias. Se os dias são tristes, seus beijos são
agressivos; se alegres, cheios de luz, manhosamente seus lábios deslizam aos
pés dos banhistas fascinados com o corpo moreno da garota assanhada. Na
calçada, eternizada nas onduladas pedrinhas
portuguesas, desfilam pescoços
apinhados de jóias raras ou falsas, não importa, enquanto os velhinhos, seus charmosos aposentados,
caminham ao balanço da eterna melodia que vem do mar.
Quem,
se lembra da Teinha, um biscuit de cabelos “a la Bardot”, amiga do Erasmo
Carlos? Faz anos não ouço diminutivo
igual... Ela, sempre animada para festas
e noitadas na Ladeira dos Tabajaras.
Copacabana, perfeita para que o Nelson Cavaquinho se
perca por seus inúmeros bares. Como encontrá-lo, para fazer aquela matiné no
Teatro Ginástico?
“Demanda”, de uma obra teatral de proposta
política, havia virado uma peça musical.
Não permaneceria em cartaz. Nem o charme de Nelson, nem o violão
celestial de Rosinha de Valença, nem e a novidade do MPB4 seriam suficientes
para garantir uma peça totalmente mutilada pela censura.
- Corta os Beatles, o Vaticano também. Corta a bomba de Hiroshima. Corta.
Corta esta fala do “pijama vermelho do Nelson”. Corta, corta.
Fausto e Marilia também. -
esbravejou o censor.
- É o nome dos autores, nada tem a ver com a peça.-
defendeu o diretor.
- Corta, corta, já disse.
Nelson
está perdido desde a madrugada. Não
voltou.
- Foi para o boteco da Rua Paula Freitas. - afirmou
o boêmio, procurando o caminho de casa.
- Ih! Saiu
faz tempo. Deve andar pela Rua
Toneleros, com certeza. - resmungou o dono do bar.
Uma
nota perdida no ar indicava o caminho.
Sentado no meio fio cantarolando, sempre bem acompanhado, encontrei
Nelson.
- E aí, Nelson, onde você se meteu durante toda a
noite?
- Tô fazendo uma música pro seu filho.
- Mas, nem estou grávida!
- Não importa, assim é melhor. Ele nasce cantando e tomando umas biritas que
nem eu.
Incorrigível, esse Nelson. Lindo.
Feliz como criança feliz. Todo
ternura. Como repreendê-lo? Impossível.
Possível é eternamente amá-lo...
-
Você acredita que pode enfrentar um encontro com os militares? –
perguntou, de súbito, Juarez . Se não puder tudo bem. Encontraremos outra
saída. Fazemos assim: você se apresenta.
Caso inédito. Os militares se
assustam. Você explica a venda do
mimeográfo. Diz que não tem nada a ver
com tudo isso.- completou. Eu acredito em você, sempre foi muito
convincente. Eles acreditaram também.
Vocês retornam à casa; tem muita gente na clandestinidade se pudermos evitar,
melhor para todos. Tem as crianças, a
escola, muita coisa em jogo. Você
pode. Tenho certeza. Mas a decisão é sua. – sentenciou. Moacyr
está morto. Foi executado em Minas
Gerais. Outros companheiros foram
presos, estão sendo brutalmente torturados. A situação está difícil, mas com a
sua habilidade e inteligência podemos sair dessa.
Difícil
um não. Era pegar ou pegar. Ou o
depoimento voluntário, ou o depoimento involuntário. Cedo ou tarde, eles colocariam aos mãos em
mim. Sempre fui medrosa, muito medrosa,
mas não para enfrentar a vida. Era, tão sinceramente questão de viver.
- Sim, vou.
Pode contar. Vou e volto.
- Se o pior acontecer, quero
dizer, se ficar presa, entregue o lugar do encontro comigo. Vou te buscar, custe o que custar. Praça José de Alencar, duas da madrugada,
todas as terças feiras. - completou Juarez.
- Tenho
certeza que sim.
Juarez
Guimarães, militante da Colina (Comando de Libertação Nacional) entrou uma
manhã nos nossos dias, em 1966, nos
primeiros em que Marcello, devagarinho foi se acomodando dentro de mim,
esperando amadurecer para sair por aí, vivendo.
Juarez chegou num dos momentos mais lindos da vida.
Estava totalmente aberta para construir um mundo novo, o mesmo em que, bem
pronto, habitaria meu primeiro filho.
Desde
1962, participava de reuniões políticas de um grupo de estudantes da Estelita
Lins. Marx e Engels eram os nossos mestres; Lenin, o líder maior, mas foi em
Stalin que, naquela época, me descobri.
- Stalin tem o dom de descomplicar o entendimento
sobre luta de classes, professava Mauro, nas tardes de discussão calorosa.
Juarez
era sociólogo, conhecia como poucos os problemas brasileiros. Seu caráter
primava pela firmeza, serenidade, garra, total falta de machismo, praticidade,
crença inabalável no homem. Determinado nas colocações de ordem mais complexas;
isso fazia dele um líder ímpar no projeto de um Brasil novo.
O
mundo explodia. A Apollo XI descia na lua, as fotos de Biafra passavam a
frequentar as páginas dos jornais, denunciando a morte, por fome, de milhares
de pessoas.
Os
Beatles, os Rolling Stones, João Gilberto, Hendrix, Pink Floyd, transformavam o
cenário musical numa revolução de notas, acordes e comportamento. Os Doces
Baianos sacudiam a apatia nacional, os
estudantes deixavam suas carteiras e saiam à rua. Janete Clair construía a fábrica de sonhos, Barnard, o
cirugião sul-africano, realizava o
primeiro transplante do coração, mas Che havia sido vilmente assassinado na
Bolívia; Martin Luther King, também.
Juarez
fazia parte do exército que vai na frente construindo o futuro.
Durante
quatro anos, convivemos com ele. Por quatro anos, pude comprovar sua
honestidade, seu amor sem fronteiras. Com ele, amadureci minhas convicções de
contribuir para um mundo melhor. Um mundo de paz e solidariedade. Podia-se
confiar nele. Eu confiava, sem restrições.
Decisões
drásticas, irreversíveis, eu as conhecia de cor. Atravessar o túnel escuro não
constituía uma novidade; havia aprendido que a vontade se sobrepõe a qualquer
obstáculo, que detrás de cada montanha existe um vale iluminado. Se a rocha nos
parece gigante, sempre há a possibilidade de contorná-la: a saída pode estar
distante, mas um pouquinho mais e ela está ali.
- Amanhã, o que você acha? Perguntou Juarez.
- Tudo bem. Amanhã na primeira hora da manhã. Fausto
viaja para Minas para ter um álibi?
- Combinado.
Sua
mão posou tranquila e forte sobre meus ombros.
- Estarei esperando. sorriu
Durante toda a madrugada,
estive atenta à vida. Tentava conciliar o sono, precisava descansar. Uma noite
mal dormida seria fatal para a paz interior e a defesa externa.
Passeei
pelos campos vangognianos, repletos de girassóis; entrei na “Tabacaria”,
mergulhei em Dante e discuti com Göethe. Entre
um cochilo e outro, trilhões de bolas corriam desenfreadamente para o
horizonte, sendo tragadas violentamente. Uma delas segurava ferozmente outras
duas, numa luta desesperada para não ser engolida pela bola mestra, que atraía
todas para a linha divisória da imaginação. A medida que as três se aproximavam
do final, a força era cada vez maior. Frear, frear. Mais força, mais força.
Numa batalha feroz, as três bolas estancaram, lado a lado. Juntas, leves,
fortes...
Despertei.
Amanhecia.
Levantei. Precisava parecer uma inocente elegante.
Pintei os olhos com sombra verde, caprichei no rímel, nos lábios um batom avermelhado, o cabelos comportado. Vesti a
roupa comprada no dia anterior, um delicado vestido branco de bolas verdes. Adoro
tecidos de petit pois. Ficou bem. Muito bem. Leve, fagueira. Me lembrei de Vinícius
de Moraes:
“...Ah. que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos
Ao
abri-los ela não mais estará presente.
Com
seu sorriso e suas tramas .Que ela surja, não venha;
Parta,
não vá
E
que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O
fel da dúvida...”
Sempre quis um mundo melhor, em todos os sentidos,
companheiras vaidosas, companheiros garbosos.
A liberdade é bonita, cheirosa, fresca, leve, amorosa. A
prisão é triste, fedorenta, obscura, cheia de olheiras. Para lutar por um mundo
melhor é preciso estar bem por dentro e por fora, e estar profundamente
apaixonada pela vida. Assim me sentia linda, linda e, principalmente, poderosa.
Peguei a barca para Niterói e surpreendi: entrei ao DEOPS. Como o
combinado cheguei sem ser esperada.
- Por favor, seus documentos.- berrou o sentinela.
- Estão me esperando.
- Quem está esperando a Sra?.
- O responsável pelo mimeógrafo, que foi apreendido
numa casa aqui em Niterói.
- O quê? - seus olhos arregalaram estupefatos de
horror. Que disse? - gaguejou apavorado.
- Como lhe disse. Não o conheço, nem sei seu nome.
Sim sei, que estão me esperando.
- Um momento. Um momento, por favor.
Segundos
depois, estava diante de um delegado.
- Doutor, esta é a senhora do tal do mimeógrafo.
Nunca
mais lembrei seu nome. Melhor assim; o feio e o mal são para serem
definitivamente esquecidos. Todos os nomes, os rostos daqueles senhores, nunca,
jamais serão recordados. Contudo, um único me chamou a atenção; o major
Matt. Matt, não me soou de origem
latino-americana.
Alto,
louro, de olhos azuis, fala pausada, como que tentando articular as palavras
com clareza, foi o primeiro a falar.
- Então, a senhora é a do mimeógrafo? Necessitamos
de seu depoimento.
- Para isso estou aqui. - respondi com firmeza.
- Por aqui, por favor.
Duas
mesas, seis cadeiras, uma velha máquina de escrever, um escrevente
circunspecto, quatro caras frias, sisudas, secas, indiferentes, olhando com
superioridade, por cima dos meus ombros, completavam o cenário. Quantas cenas
ficaram gravadas naquelas paredes! De tortura, de pânico, de medo e de morte.
Quanto terror! Meus órgãos tremiam, sentia forte a presença da dor.
Cuidado
menina, sussurrava meu coração. Atenção garota, alertavam meus sentidos.
- Então quer dizer que a senhora vendeu o
mimeógrafo? Para quem?
Uma
certa satisfação invadiu-me toda, daqui para frente era só criar uma linda e
estúpida estória. A pergunta veio certa, segura, exatamente eu como esperava.
- Vendi, sim. Estava ocupando muito espaço.
- Tudo bem, mas para quem?
- Não tenho a mínima idéia. ..... continua