Dezembro 1969
A
cidade é simples, interiorana,
cálida, um porto alegre, como diria
Mário Quintana. Os poetas têm o dom de nos despertar a curiosidade e a paixão
antecipada dos fatos e da história. Que seria de nós, simples mortais, sem a maravilha dos sonetos e dos versos livres?
Porto
Alegre era uma dessas curiosidades
acesas pelas mãos do poeta.
Nada
diferente do que eu sonhara. Bonita. Gauchamente charmosa.
Hospedei-me no Hotel São Luiz; escolha estudada, com
prudência, nas noites de São Paulo. Surpreendentemente, o hotel exigiu
pagamento antecipado da minha estada. Preocupei-me. O dinheiro agora não daria
para mais do que uma refeição. Descansamos um pouco da exaustiva viagem, e
aproveitei o meio da tarde para conhecer um pedacinho da cidade antes de
dirigir-me ao ponto estipulado.
Na
hora marcada, 17h30m, lá estávamos, no lugar indicado. Um caramanchão,
revestido de trepadeiras em flor, servia de ancoradouro aos barcos de passeio,
que iam e vinham, cruzando o lago. Visitantes deixavam o parque Farroupilha
àquela hora da tarde A ordem era esperar
quinze minutos. Somente 15 minutos. Passados vinte minutos, nem sinal do
contato. A noite caíra sobre a cidade, como todos os dias, para a ordem geral
do planeta, sinistra para mim. O próximo ponto seria dentro de quinze dias.
Estava sem dinheiro, com duas crianças para dar de comer e dormir.
Impacientes,
Cell e Edu começavam a reclamar que tinham fome, estavam cansados:
- Vambora, mãe!
Aquela
voz tão doce, chamando-me à vida e meu coração desesperado, buscando forças
para enfrentar o obscuro. Venderei o relógio. Amanhã buscarei um lugar para vendê-lo. Caio me dera
de presente, na véspera da minha partida. Bendito Rolex. Venderei o relógio,
amanhã bem cedo.
Tomei
Marcello e Eduardo no colo e comecei a caminhar. Não podia me dar ao luxo de
pegar um táxi. Todo o dinheiro que
sobrara mal dava para o jantar. Posso suportar a fome; as crianças, posso
enganar com um leite. No café da manhã,
comeremos tudo a que temos direito, e guardaremos o máximo possível para a
merenda. Para o almoço, usaremos o dinheiro restante.
Como
venderei o relógio, terei dinheiro. Verei, então, que caminho tomar.
Este
plano dará certo. Terei dinheiro. Mudarei
de hotel.
Mas,
e se André não vier? Se foi preso? Se
foi, estou frita. Devo abandonar o hotel imediatamente. Ninguém sabe que estou
aqui. Teria sido seguida? Bom. São quase sete horas, não conheço esta cidade.
Não posso ficar nervosa. As crianças não podem perceber que estou com medo.
Saio do hotel pela manhã bem cedo. Se ele foi preso, quando chegar no hotel a
polícia pode estar me esperando. Mas ninguém sabe que estou nesse hotel; posso
esperar até amanhã.
Havia
tomado as minhas precauções. Não cheguei cinco dias antes do combinado. Não fui para o hotel
indicado. Estou loura. Bem vestida,
maquiada. As crianças estão com os cabelos bem compridos.
Mesmo
que tenha sido preso e fale; não vai falar. Por que falaria? Não sairei do
hotel. Vou ter calma. Fazer tudo com a maior tranquilidade; qualquer atitude
impensada pode ser fatal. Ai, como
Marcello e Eduardo pesam... Estou um trapo. O hotel parece cada vez mais longe.
Ah!
Se pudesse parar um pouco. Ah! Se pudesse gritar. Será que vou passar a vida
inteira fugindo?
Não.
Não vou retroceder, nem em pensamento. Jamais
retrocedi. Esta situação é caótica, mas não é a primeira, nem será a
última.
Entrei
no hall beirando a estafa. Quase 40
quilos de preciosidade e 800 toneladas de angústia.
Rodolfo
aqui! Que alegria! Em Porto Alegre!? Que coincidência! Estaria na Estação da
Luz comprando passagem para cá?
Acerquei-me
devagarinho, pois conversava com um funcionário da recepção. Esperei.
- Rodolfo?-
chamei baixinho.
Ele
me olhou intrigado.
- Desculpe. A senhora deve estar enganada.
- Não, não estou.
- Com licença.
- Rodolfo, sou Miriam. Pelo amor de
deus, você me conhece, sim! Marilia,
Rodolfo, Marilia.
- O que você está fazendo aqui? Está
neste hotel com as crianças?
- Estamos.
- Eu também; vamos rápido para o
quarto.
- Como você veio parar aqui?.
- Eu é que pergunto. Por que não
foram ao ponto hoje?
- Ponto? Hoje? Está enganada, não temos nenhum ponto
com você.
- Ora bolas, como vou estar enganada? Um tal de
André deveria ter ido ao encontro. Estamos em Porto Alegre, não no Rio. - respondi nervosa.
- Calma, por favor. Calma. Quem te
mandou vir para Porto Alegre, a VP?
- Caramba, VP!? Não, a Var.
-
Você está na VAR, menina?
- Eu estava em Belô, desde maio.
Fiquei na VAR sem querer, não tinha
nenhuma informação; depois conto toda esta história. Você ficou na VP?
- Sim, estamos quase todos na VPR.
- Que horror!... Ajude-me! O contato que deveria vir nos
buscar não apareceu. Estou sem dinheiro, sem saber para onde ir.
- Então, o Juarez não sabe que você está aqui?
- Claro que não deve saber. Se estou na VAR e vocês
na VP! Quando Carlos me disse sobre o racha, e que iria nos buscar, a VAR me
tirou de Minas.
-
E afinal, o que você está fazendo nesta cidade?
-
Indo para Cuba.
-
De que jeito? Como vai sair do país?
-
Num sequestro! Existe outra forma? Não temos nem documentos...
- É grave. Contudo solucionaremos este impasse.
Dinheiro não é problema. Vou contatar o Juarez para uma definição ou ajuda. A
organização é contra o sequestro. Porto Alegre é muito pequena. A VAR vai nos
localizar. Estamos rachados e com problemas. Alguns militantes eram da VP e passaram para a VAR,
isso nos faz vulneráveis. É provável que André, o companheiro que faltou ao
ponto, seja conhecido nosso.
- Com discrição sairemos dessa. - comentei. Que
irresponsabilidade! Sozinha, com estes dois meninos, e furam o ponto!
Conversamos
durante algumas horas, sobre minha estada em Belo Horizonte. As visitas do
Carlos, a perda de contato com a Vanguarda Popular Revolucionária.
Seis
meses depois, pude entender o porquê do meu isolamento, da ausência de
respostas. Estava envolvida em uma ação, não poderia sair dela, e, se pudesse,
teria que ver como, sem prejudicar ambos os lados.
Em
48 horas chegou Maria do Carmo. Uma felicidade imensa. Fora as questões
políticas a serem resolvidas, havia o lado emocional. Rodolfo e Maria eram as
únicas ligações ao meu passado. Falamos por toda a noite. Passado, futuro. Dos
companheiros presos, da resistência, dos problemas enfrentados com tanta gente
na clandestinidade, do projeto defendido por Lamarca, da VP ter seu próprio
campo de treinamento, no sudeste. Dos nossos sonhos, do Rio, do Fausto e,
especialmente do Juarez.
Chegamos
a uma conclusão. Deixar de participar da ação naquele momento, era prematuro.
Deveria ir ao ponto daqui a quinze dias. Inteirar-me sobre a segurança de se
fazer um sequestro. Conhecer os detalhes. Como? Onde?
Um
companheiro viria para dar retaguarda, e manter o comando da VP informado. Num segundo
momento, avaliaríamos se participaria ou
não do sequestro.
Combinamos.
Mudaríamos de hotel. Rodolfo para um, eu para outro. Juntos, nunca.
Maria
do Carmo regressou ao Rio.
Dias
depois à hora do jantar, deparei com Rodolfo na recepção.
- O que você está fazendo aqui?
- Hospedado.
-
Também estou. Amanhã cambiamos de hotel. Cheia de história esta cidade,
porém pequena demais para nós dois!. - gracejei.
-
Pela manhã, cada um para seu lado.- como o pactuado.
Saía
com as crianças a passear pelo Parque Farroupilha. Desfrutava aos poucos da
cidade, gozando de uma falsa liberdade.
No dia seguinte, nova surpresa: Rodolfo no café da
manhã. Rimos muito. Nova mudança de hotel.
Pedrinho
chegou. Beirava os 18 anos. Compenetrado, aliava sua seriedade de militante a
um jeito moleque e brincalhão, descontraindo a tensão, sempre presente no ar.
Por
aqueles dias, comemoramos os 4 e 3 anos dos meninos. Rodolfo, eu e as
crianças numa singela festa no parque.
Uma metralhadora que disparava fagulhas para Marcello, um carrinho para
Edu, um
saco de pipocas, um passeio de barco pelo lago, lembranças guardadas por
toda a infância presenteadas por Rodolfo. Pela vida afora, recordamos esse
carinho. Comemorar a vida é fundamental em tempos de guerra.
No dia seguinte, estaria no ponto aguardando André.
Com
quinze dias de atraso, André nos aguardava ao lado do ancoradouro, juntamente
com outro companheiro.
Recebi
instruções: comparecer às reuniões e deixar os meninos durante o dia com uma
companheira, para dar-me mobilidade.
Três ou mais reuniões. Que remédio! Não podia dizer que tinha Pedrinho,
nem que Rodolfo cuidaria delas.
-
A companheira pode brincar com elas, enquanto estamos reunidos.
-
Elas não estão acostumadas a ficar com estranhos. - falei.
- Criança acostuma com tudo. Além do mais, esta
companheira é ótima. Será apenas para as reuniões. - argumentou Andrada.
-
Estou de acordo. As reuniões podem ser à noite, os meninos dormem às
19h. Ela pode ficar no hotel.
-
Não. Elas devem ir com este companheiro. A casa dele é grande, e as
crianças terão liberdade para correr e brincar.
- Depois desta longa temporada em hotéis, vão
adorar. - falou André.
- Tudo bem. Que retornem antes das sete.
Lembre-se, elas dormem cedo. Às sete
horas, no máximo.
- Não se inquiete, antes das sete estarão aqui.
Passava
das 20h. Marcello e Eduardo não haviam regressado. Pedi um lanche no quarto
para não ausentar-me. 22h, nada. Que foi que aconteceu? Algum acidente com
eles? Dormiram de cansaço? Por que não avisaram?
A
próxima reunião estava marcada para dentro de dois dias. Como localizar meus
filhos? Saber deles? Como encontrar André, Andrada?
Passei
a noite em claro. Rodava pelo quarto em pânico total. Esperava o dia amanhecer;
o silêncio da noite, a falta de ruído. O mundo dorme. Como despertá-lo? Dorme
a sono solto. Relaxado, sereno. Quanto
mais noite, mais tenebroso. Os pensamentos crescem, tomando dimensões
gigantescas, o medo adentra as entranhas, dilacerando tudo. As soluções se
apequenam, murcham, secam, apodrecem, desaparecerem na atmosfera.
Que
foi que aconteceu com meus filhos? Tudo de novo, não. Não quero viver a
angústia da separação. Não quero viver este medo.
A
cidade está feia, cheira a água insalubre. Cheira a tristeza. Onde está
Quintana, que não me ouve. Onde
estão os guerreiros farroupilhas? Onde está o povo brasileiro, meus irmãos de
sangue, crença e cor?
Um
suspiro, um estalar de ossos, um gemido preguiçoso. É o amanhecer chegando de
mansinho, sem pressa. Sairei correndo para a rua: quem sabe meu coração não fareja
minhas crias?
Às
10h, encontro Pedrinho.
- Como você está abatida? Que houve?
- As crianças não voltaram. Andrada levou os meninos, para conversarmos
com tranquilidade. Eu mesma estive de acordo, mas que eles voltassem ao
entardecer. Somente amanhã estarei com
eles outra vez. Não tenho como localizá-los. Estou desesperada, Pedrinho.
- Paciência, não
aconteceu nada. Quem sabe eles aparecem hoje? Não saia do hotel. Voltarei à
tarde.
Fazia
sol. Melhor assim; facilita o raciocínio, diminui a ansiedade. Odeio os dias
cinza, me embotam a mente.
Levaram
as crianças para que eu não entregasse a ação, concluí. Quem disse que eu iria
entregar? Ora essa! Eles querem ter certeza de que vou no sequestro. Por isso
as crianças não voltaram.
No
encontro com Andrada, a sentença: as crianças serão entregues no dia da viagem.
- No dia da viagem? Como vão ficar
sozinhos? Essas crianças já sofreram muito! – retruquei, tentando demovê-lo.
- Sem questionamentos. Está decidido. – replicou.
Os
momentos que se seguiram foram os mais tristes. Iria deixar meu país coagida pelos dois lados da moeda. A
ditadura, que tortura, mata, esquarteja nossos ideais, e o sectarismo de uns,
que não entendem os verdadeiros caminhos para a conquista da liberdade.
Não
foi à toa o racha. Estou confusa, triste, tensa, para julgar friamente esta
estúpida situação.
Assim
passei meus últimos dias no Brasil. Rodolfo e Pedrinho amenizavam a ausência
das crianças.
Como
Rodolfo regressaria a São Paulo, passou-me alguns documentos para Onofre Pinto, representante
da VPR em Havana. A viagem à ilha era fato consumado. Como teria reunião com
Andrada, marquei com Pedrinho no dia seguinte, às 15h.
Dormia
quando tocaram à porta. Despertei assustada. Era André.
- Vamos, pegue suas coisas.
- Que horas são? Cadê os meninos?
-
Três horas. Vamos encontrá-los. Temos pressa.
Sua
mala esta arrumada, não?
- Claro, sempre. Três da manhã!
- Vamos viajar e precisamos chegar cedo.
Boêmios
retornavam aos seus lares, povoando, discretamente, as ruas vazias àquela hora
da madrugada. Entrei no carro ainda sonolenta. Fora da cidade, paramos.
- Vamos trocar de carro.- ordenou André.
Um
fusca estacionou um pouco mais adiante. Caminhamos até ele. Encolhidos no banco
de trás, sonolentos, olhinhos assustados, meus dois amores.
- Mãe!- choramingaram os dois.
Envolvidos
nos meus braços, presos ao meu peito, nem vi o amanhecer, nem notei que nos
distanciávamos do meu país. Não importava o futuro, nem para onde íamos. De uma
única coisa eu tinha certeza: ninguém os arrancaria mais de mim, nem que, para
defendê-los, tivesse que matar. Hoje,
trinta anos vividos, reafirmo essa promessa.
No
banco da frente, um jovem casal de simpatizantes me levava para o Uruguai. Em
oito horas de viagem, pouco nos comunicamos. Eram simpáticos, carinhosos,
prestativos. Tinham ordens de deixar- nos em Montevidéu.
- Dentro em pouco, chegaremos à
fronteira. - lembrou a companheira.
Pegue sua nova identidade. Melhor se livrar da antiga.
Com os dentes, cortei, pedaço a pedaço, todo o meu
passado, levado prazerosamente pelo vento, nas rimas apaixonadas de Vinícius:
“ Vontade de beijar os olhos da
minha pátria
de niná-la, de passar-lhe a mão pelos
cabelos...
Vontade de mudar as cores do
vestido(auriverde) tão feias
De minha pátria, de minhas pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!”
Tensos,
mas parecendo turistas lépidos e
fagueiros, a caminho de Bariloche, cruzamos o posto policial. Registraram o
carro, documentos.
- Podem seguir.- ordenaram.
Paramos
para urinar, ali mesmo, na estrada. O primeiro susto passara.