custasse o que custasse. Adoraria um cigarro. Adoraria um copo d’água. Peguei a mamadeira e molhei os lábios.
As estrelas brilhavam sorridentes. Sorri para elas e lembrei de Bilac:
Ora (direis) ouvir estrêlas!
Certo perdeste o censo!...
Não só ouvi estrelas, como conversei com elas por toda a madrugada. Falamos do fascínio dos vagalumes que chegam com a noite e se perdem nos primeiros raios de sol; do Cruzeiro do Sul, brilhando nos meus campos cheios de palomas. Das amazonas, do chimarrão compartido, das caatingas fedorentas de morte, dos severinos, da carta de Caminha.
Falei da Portela, do Nelson Cavaquinho, do segredo da Ursa Maior, do Henfil, do Caetano, do Gil, e do Chico.
Lentamente chegou o sol. Amanhecia. A poesia corria desenfreada, prendendo-se nos feixes avermelhados do céu.
Paulatinamente, a tripulação e os passageiros foram despertando.
O pouso na cidade do Panamá, às 9h dava início ao recomeço dos problemas anteriores. Reabastecimento, pagamento de taxas alfandegárias, negociações.
Fomos autorizados a aterrissar longe da área de desembarque. Borges, o co-piloto mediador, desceu para administrar o combustível. A Panamérica ofereceu água e comida para todos. Cuidadosos, recusamos.
Na gula poderia estar o nosso insucesso. Quem disse que é gula comer, depois de tantos dias de jejum absoluto? Comer nem pensar. Certamente, a comida conteria barbitúricos, e fracos como estávamos, dormiríamos imediatamente. Não. Aguentaríamos até o fim.
De novo, os mesmos problemas.
- A bateria existente não estava em operação há muitos meses.- confessou o Comandante. Os mecânicos vão conectar em série, baterias de automóveis, para acionar a turbina.
- Ótimo. Não tenho dúvidas de que conseguirão.
A poucos metros do avião, um militar vestido a campana. A seu lado, um senhor de terno. Logo soubemos ser o embaixador do Brasil, e o representante da aeronáutica, e lógico, a polícia panamenha.
- Conversei com eles, e os dissuadi de qualquer negociação. Falei da decisão de vocês de não abortarem a operação. - disse Borges.
Cinco horas mais de incerteza, até a decolagem para a última escala: Havana. Cuba
4 de janeiro de 1970
Aeropuerto José Martí - Havana. Cuba.17h30m.
Lentamente, o Caravelle foi parqueando junto à plataforma de desembarque, onde, milagrosamente, se lia Aeropuerto José Martí.
Um frio intenso percorreu meu corpo. Seria uma miragem, ou era mesmo a tão famosa, odiada, adorada, solidária, temida e invejada terra cubana?
- Mucho gusto. Vamonos.
- Onde estão meus companheiros?
- Como?
- Companheiros.- repeti.
- Oh! En otra sala.
- Quero vê-los.
- Como? Que dice? - perguntou o outro militar a Conrado.
- Que desea verlos.
- Ahora, es imposible.
- Quero vê-los, agora. Viemos até aqui juntos e não vou me separar deles agora.
- Espere um momento.- completou Conrado.
Voltou trazendo André.
- Estamos sendo interrogados.
- Como interrogados? Estamos mortos de cansados! 27 horas de terror e estão sendo interrogados? Do que vocês falaram?
- Sobre o treinamento.
- Esqueça o treinamento! Cuba não dá asilo, nem dá treinamento, já informaram. Vocês estão cansados, mas não loucos! Diga a Andrada que não insista, por favor.
- Tudo bem. Vamos embora, insistiu Conrado.
Numa casa, situada bem próximo ao aeroporto, ficamos, até que depois de algum tempo, outro militar veio nos buscar. Carreguei Marcello e Eduardo nos braços até o carro, desejando ardentemente chegar ao destino. Uma casa, uma choupana, um quarto fedorento de hotel, uma mansão, mas chegar. Queria chegar. Chegar, chegar.
Que avenida florida! Quantas árvores estupidamente frondosas, quantas margaridas! Igrejas, mansões!... Quantas mansões! Olhava atônita. Será que nos blefaram!?
Cuba não era cinzenta e triste? Não era!? Parece-me que não!...
A energia emanada daquele solo, fez-me voltar mansamente à vida...
Ao dobrar a esquina, um cinema. Em cartaz “Les Parapluies de Cherbourg”. Este filme passando aqui?... Esse filme? Aqui? Será uma alucinação!? Meu deus, como controlar este sintoma? Não agora!
Quantas mulheres elegantes! Vestidos godês!... Penteados B-52, saltos Luiz XV. Devem estar filmando algum filme de época. Hoje está na moda. A minissaia libertou a mulher em muitos sentidos. Dos milhões de anáguas, da censura sexual, e, pouco a pouco, do jugo machista. É importante registrar todas as épocas, pensei com meus botões.
O hall do hotel Capri, apinhado de gente que circulava de lá pra cá, deixava escapar a esfuziante alegria dos atores.
Não estava tendo alucinações! Todos os personagens estavam vestidos assim. Menos mal! Ainda mantinha a consciência.
Divertida, essa Cuba!
Nem percebi quando preenchi a ficha do hotel, muito menos quando mudaram meu nome e os dos meninos, tal a curiosidade de olhar ao redor.
Subimos ao quarto, me banhei e aos meus meninos. Coloquei-os na cama e jamais poderei precisar como ou quando conciliei o sono.
Um surdo barulho de ondas, entrou sorrateiramente pelos meus sentidos:
- Dormi! Ai, meu deus, dormi!
Pulo da cama sobressaltada, tropeçando. Vou à caminho da luz que vem discreta através da janela.
Abro a cortina.
Diante dos meus olhos embaçados, vejo o mar.
Furioso, agressivo, quebrando suas gigantescas ondas no Malecón, anunciando enero: inverno acima do Equador.
Olho Cell e Edu se espreguiçando.
- Mãe. - disseram em uníssono.
- Oi...
Procuro o rádio, giro o botão em busca de “Fusil contra Fusil”.
Uma voz rouca, saída do profundo do coração, cheia de amor, invade o quarto:
Cuba, primer território libre de América. Hoy, 5 de enero de 1970. Año de los diez millones”.
Amada, supón que me voy lejos,
Tan lejos que olvidaré mi nombre.
Amada, quizás soy otro hombre
Más alto y menos viejo
Que espera por sí mismo allá lejos,
Allá, trepando el dulce abismo.