Lima,
a de Vallejo e Chabuca Grande, qual gema preciosa incrustada na história, nos recebeu cheia de surpresas. Hoje não chove em Lima, e
não tenho vontade de morrer...
contrariei
Vallejo.
O
avião parqueou engasgado. Aos poucos,
tensos e famintos, os passageiros despertavam para a realidade.
- Este vôo iria até Porto Alegre. - esclarecia
novamente a aeromoça, preocupada com as consequências da falta de água e comida
nas próximas horas.
Ainda
era manhã mas o calor se tornava insuportável. Duas horas haviam passado e as
autoridades peruanas não liberavam a manutenção do avião, alegando não dispor
de equipamento adequado.
-
Neste aeroporto, não dispomos de condições técnicas para abastecer o
avião. O birreator Caravelle é um modelo
obsoleto. Não temos a bomba para descomprimir o combustível e nem aparelhagem
elétrica para ligar as turbinas.- explicou o comandante. O equipamento que faz
este avião sair do chão não existe neste aeroporto. Contudo, a Cruzeiro está
disposta a colocar uma nova aeronave para vocês chegarem ao seu destino.
- Não
sairemos daqui. - devolveu Andrada.
- Queremos sair daqui!!!- gritou uma senhora. Louca, desvairada, inconseqüente, desumana! –
me fuzilava com o olhar. Como pode expor assim seus filhos, sua maluca!?
Todos assistiam preocupados àquela explosão. O
terror vazava pelos olhos espantados dos passageiros.
- Calma! Calma,
por favor. - pedia desesperado o marido.
André
foi até o assento da passageira e a acalmou, alegando o óbvio.
- Não vamos retroceder. Nada acontecerá, se ficarem
sossegados. É apenas uma questão de tempo.
Tempo.
Tempo de amar. Tempo de ser feliz. Tempo de liberdade. Tempo de guerra, para
encontrar a paz. Tempo de esperar.
- Ninguém pode deixar seu lugar. Para ir ao
banheiro, somente acompanhado de um de nós. - determinou André.
Aproximava-se o meio dia, o sol abrasante queimava a aeronave, quando apareceram os
primeiros simpatizantes que foram se aglomerando na varanda do aeroporto.
Faixas
e mais faixas com palavras de ordem revolucionárias, coloriam a tensão e passavam
a solidariedade tão necessária em momentos difíceis.
-
As turbinas não ligam; sem as baterias apropriadas os motores não voltarão a funcionar. As
empresas peruanas não usam Caravelles. Este aeroporto não está aparelhado para atender a este tipo de avião. Só temos
uma solução para o impasse: trocar de avião. A Cruzeiro do Sul vai mandar outro.- de novo a fala segura do
comandante.
Ouvimos
perplexos a sua voz serena. Sem dúvida, um homem experiente, acostumado às
peripécias que nos prega a vida, como estar
sequestrado em pleno Andes, responsável por tantas pessoas, negociando
para todos e, para si próprio, a liberdade.
- Precisamos conversar.- pediu André.
Até aquele momento, apesar do desvio de rota, nada
parecia tão complicado. Alguns inconvenientes passíveis de solução. A presença
de jornalistas na pista do aeroporto, apinhado de gente, dava-nos uma certa
segurança.
- Não sairemos deste avião. Custe o que custar.-
reafirmou Andrada. Morreremos, se preciso for. Estamos dispostos a morrer. De
nada adianta tentar nos persuadir. Compreendeu, comandante?
Amaral
afastou-se devagar, olhando-me serenamente.
- Tudo bem, vou passar esta informação às
autoridades brasileiras e à companhia aérea.
Através
do rádio, comunicou à torre nossa decisão. Regressou mais animado:
- Desejo conversar com a mãe das crianças.
- Para quê?
- Não sairemos daqui vivos. - confessou-me, sem responder à pergunta. Mais cedo ou mais
tarde, vocês vão ter que sair.
- Sair?
-
Sair. Tirados à força. Sem água. Sem comida. É uma questão de tempo.
Estas crianças vão morrer de fome. Vocês não vão aguentar.
Tentei
interpelá-lo.
-
Ouça-me, pediu. O presidente
Velasco Alvarado está disposto a oferecer-lhe asilo político. O próprio
ministro virá até o avião, acompanhado
de jornalistas, para garantir sua integridade física. Garantem que nada lhes
sucederá. Não interessa ao governo
nenhum confronto em solo peruano. São democratas e reconhecidos pelo povo.
Meus companheiros entreolharam- se aflitos. Que
decisão tomaria, agora que a negociação mudara
tão repentinamente de mãos?
Eu, que fora posta à margem de tantas decisões...
das mais simples às mais secretas, que tivera meus filhos afastados do meu
convívio, para garantirem o sequestro... Neste instante, o destino de todos,
nas minhas mãos: passageiros, tripulantes, companheiros, meus próprios
filhos... sim! Meus filhos, acima de todos. Olhei para os dois. Tão lindos, tão
carentes de infância, de juventude e de maturidade. Tão pequeninos! Por eles,
por todas as crianças do meu triste país, pelos que têm o direito de conhecer o
mar, pelo direito que todos têm de ser felizes, como dizia Martí. Por todos
eles.
- Deixe-me a sós com meus companheiros, por favor. -
pedi.
André ía
falar. Cortei.
-
Eu não vou deixá-los. Não agora. Antes que vocês aparecessem na minha
vida, eu já cogitava em sair do Brasil. Um dia, conversaremos sobre este
momento. Conversaremos. Chamem o comandante, por favor...
- Eu.
- Eu vou ficar! Agradeça ao Governo Peruano a
delicadeza do gesto. Agradeça aos jornalistas a solidariedade. Diga ao governo
brasileiro que não vou descer deste avião.
- Não quer pensar um pouco mais?- pediu.
-
Não. Não preciso pensar, para decidir o que há muito está decidido. Não
sairei deste avião.
Voltou
três vezes, tentando dissuadir-me:
- Mas se a senhora...
-
Por favor, não insista.
Coçou a cabeça pensativo, preocupado. Afinal, sua
vida também estava em jogo. Visivelmente nervoso, completou:
- Se você não vai mesmo sair deste avião, aviso que
na parte traseira há uma porta que abre. Vocês
devem ficar de olho nela. Seja o que deus quiser. Vou transmitir sua
decisão ao representante do ministro de Relações Exteriores.
-
Tudo bem. - respondi secamente.
Todos
me olhavam. Uns, tranquilos diante do inevitável; outros, resignados, exceto
aquela senhora.
Que sabia aquela mulher de sofrimento, que sabia das
torturas e torturados, que sabia de liberdade, de pão, de sede e frio? Do povo
massacrado, sofrido, sem esperança? Dos
nossos sonhos de liberdade? Da alegria, ao ver as crianças de rua em escolas,
de homens e mulheres não violentados, trabalhando com dignidade? Do amor à
pátria? Um dia, talvez saberia. Eu não estava expondo meus filhos. Estava
impedindo que eles fossem torturados em nome da ordem e do progresso.
Sairíamos
ilesos, fisicamente; tinha essa certeza, acontecesse o que acontecesse. Perder
nunca fez parte do no meu propósito de vida.
-
Abra a porta dos fundos, imediatamente! Um de nós vai ficar lá de
plantão... André!
O cheiro insuportável do banheiro impregnava toda a
nave. Doze horas haviam se passado, desde que
saíramos de Antofogasta. A água do banheiro havia esgotado. Todo e
qualquer tipo de alimentação nos faltava. Estávamos famintos e sedentos.
Setenta e duas horas sem dormir faziam uma grande diferença, bem como a fome e
a sede. Todo um ano de clandestinidade servira para o aprendizado de ficar
alerta por muito mais tempo que o habitual. Sabia que podemos viver, sem perder
peso, durante trinta dias, somente ingerindo leite. Para as crianças, tudo bem.
Havia leite suficiente para uma semana. Mas, e água? Em menos de 24 horas
acabaria.
Este
sequestro tinha hora e dia marcados para terminar. Meu tempo de espera e
negociação estavam cronometrados em relação direta à quantidade de leite e de
água para os meninos.
Fazia
mais de duas horas que o co-piloto não aparecia. Por que não regressa com
notícias?
- Os jornalistas estão muito perto. Devemos ter
muito cuidado. Entre eles pode haver infiltrados. - comentou Andrada bastante
preocupado.
- Querem tirar fotos das crianças.- disse André.
- Claro que não! Não devemos aparecer. O Manifesto
deixado em Buenos Aires nos identificou, mas eles não nos conhecem. Se a
situação muda, podemos nos confundir com os demais.
- Ilusão a sua. - resmungou Conga.
- Ilusão?
- Severina meteu a cara na janela e foi fotografada;
Athos também.
-
Não acredito! Não sabem que não podemos nos expor?
-
Deram até entrevista!
-
Entrevista!? Vá à cabine, Andrada! Acabe com isso! Merda, merda! Se
identificam a primeira mulher, encontrar-me é um segundo. Como fizeram isso,
meu deus? Não queremos violência! Nem mortes! Muito menos mortes!!!
Onde
está o co-piloto Hélio? Quero falar urgente com ele!
-
Está lá fora.
-
Lá fora?!
- Estão dizendo que os sequestradores abriram a
guarda. - comentou, nervoso, Conga.
- Abriram a guarda!? Nunca abriremos a guarda.-
olhei para André e Andrada. Seus olhos
estavam mudos.
- A situação está preta. O exército está retirando
os jornalistas da pista. Estão entrando alguns tanques.
-
Tanques?
-
Tanques de guerra, olhe pela
janela.
Lá
vinham eles, posicionando-se ao redor, sem nenhuma discrição. Imponentes,
sombrios, dominadores.
- Vão invadir o Caravelle? - comentou um passageiro.
- É só uma questão de tempo. - respondeu outro.
- Nada mais de fotos. Nem de chegadas às janelas.
Cada qual em seus postos.- pedi a Andrada que ordenasse.
- Não podemos colocar nossas vidas em jogo. Isto é o
cúmulo da irresponsabilidade!- completei furiosa.
Entre
medo e euforia, uma discreta alegria invadiu os passageiros. Vozes sussurradas
podiam agora ser ouvidas.
A tarde caía sobre Lima. Cinzenta, chorona, quase
triste. Tenho medo das tardes assim. Frustradas, sem o acariciar dos últimos
raios do sol, costumam ser perigosas. Trazem consigo séculos de angústia e
miséria.
Mas Lima é diferente. Tem a força dos deuses Incas,
elocubrei. Assim seria. Ganharíamos o
céu qual objeto não identificado, misteriosamente como toda a cultura andina.
Jazmines
en pelo y rosas en la cara
Airosa caminada la flor de la canela...cantava Chabuca.
A euforia dos primeiros momentos havia passado. O
aeroporto deserto de solidariedade, abrigava a repressão, o terror, o silêncio.
O olhar, antes voltado para as mensagens de vitória
e paz, se concentrava sorrateiro através de pequenas frestas, atento a cada
movimento, a cada gesto. Num piscar de olhos, podíamos ser invadidos.
As negociações haviam parado. Só silêncio e espera.
As crianças brincavam no corredor, ora de pique-esconde, ora atirando-se nas poltronas, ora correndo no
curto espaço e caindo nos braços de André.
- Você acha que este passageiro está com dor de
barriga? - perguntou André.
- Pode ser... respondi.
- Quando sair do banheiro, vamos ver.
-
André, são pedaços de passaporte, papéis também. Olha aqui! Uma lista
com nomes de brasileiros! Para que serve?
-
Não sei, vamos guardar?
-Conga, vá até o assento deste senhor verificar do
que se trata.- pediu André.
- A mala diplomática foi rasgada.- voltou Conga com
a nova.
-
Mala diplomática!?
-
Alguém emprestou uma faca. Não
sei, pois o rasgo é grosseiro.
- Chama o
Andrada!
- Que fazemos com esta mala?
- Vamos pensar depois. Entregaremos quando
chegarmos, ou não sei.- comentou.
De
súbito, veio a ansiada resposta.
-
Finalmente, chegaram o gerador e o mecânico chileno que fará funcionar
as turbinas. - anunciou contente, o co-piloto. Dentro de poucas horas poderemos
partir.
Enquanto
não estivéssemos no céu, poderíamos ser invadidos pela polícia. No fundo, todos
torciam pela chegada, sãos e salvos, à famosa ilha de Fidel.
Após 27 horas de terror, quase às 6h da manhã,
levantamos vôo com destino a nossa próxima escala:
Panamá.