Fevereiro de 1969
....O carnaval ficara para trás, deixando a saudade de um fantástico Jair Rodrigues esbanjando alegria com seu Bloco de Sujos, enquanto, despreocupada, iniciávamos mais um ano letivo, com mil projetos didáticos, novas metodologias de ensino.
A matriz da escola em Coelho Neto, a filial em Vilar dos Teles, prometia um 1969 de sucesso e grandes realizações.
De repente, simplesmente de repente, entre raios, trovões e tremendo aguaceiro, aqueles homens entraram sem pedir licença, desmoronando tudo.
Uma folha de papel tarjado em amarelo e verde, onde se lia uma ordem de prisão, interromperia nesta terra, nesse instante, o futuro.
- Tenho ordens para levá-la presa, vociferou o que liderava o grupo.
- Presa? Por quê?
- A senhora está envolvida com os subversivos - explicou o outro - por fazer uso de mimeógrafo para propaganda comunista.
- Mimeógrafo? Subversivos? O senhor deve estar me confundindo com outra pessoa!
- A senhora está presa. Tem que me acompanhar.
- Não. Por que tenho de acompanhá-lo? Não vejo possibilidade! Sinto muito, não tenho tempo e além de não ter feito absolutamente nada, não estou preparada. Tenho que me banhar, trocar de roupa. Estou trabalhando desde as oito da manhã, são quase duas horas. Agora não é possível. Irei amanhã.
- Amanhã? Não estamos brincando! – argumentou, quase aos gritos. Tem que ser agora! A senhora não entendeu?
- Sou diretora e proprietária desta escola. O senhor, com certeza, está enganado.
- Não estou enganado, não. Sua escola comprou um mimeógrafo, que foi apreendido em mãos de elementos ligados à subversão.
- Onde?
- Em Niterói, num aparelho.
- Aparelho. O que é isto?
- O lugar onde se escondem os comunistas.
- Comunistas? Não eram subversivos?
- Comunistas, subversivos, tudo a mesma coisa, - explicou nervoso.
- Ah! Agora me lembro. O mimeógrafo! Minha escola comprou, sim... mas foi vendido.
- Vendido!? Como vendido?
- Sim. Vendido. Heloísa, pegue o recibo da venda do mimeógrafo!
Atordoada, a secretária não conseguiu se levantar. Estava em choque. Nada sabia de nossas atividades. Talvez desconfiasse do entra e sai de estranhos, da chegada e saída de caixas e mais caixas lacradas; reuniões no adiantado da noite.
As notícias de secundaristas assassinados, como Edson Luiz no restaurante universitário Calabouço, bem no centro da cidade; dos desaparecidos e das prisões de pais de família, andavam de boca em boca, e davam o tom da vida política na cidade.
Caminhei decidida até o arquivo, peguei o recibo e mostrei a folha de papel timbrado, especificando o valor e a descrição do equipamento.
- Vou levá-lo.
- Não senhor! Este é o original. Não tenho como tirar cópia. Marque um horário que levo o recibo.
Desconcertado diante do inesperado, o militar titubeou.
- Bem. Mas a senhora tem que comparecer ainda hoje ao Ministério da Guerra, na Central do Brasil. Sabe onde fica?
- Claro, claro que sei.
Quem, da minha geração, moradora da Cidade Maravilhosa, não conhecia a famosa Central do Brasil, palco dos acontecimentos que contam parte da nossa história?
Do célebre discurso de Jango, pouco antes do golpe militar, ao cotidiano sofrido de milhares de habitantes, que transitam, diariamente, do subúrbio ao centro, em busca do ganha pão, na romaria em busca de trabalho; do sonho da menina do bairro distante em busca do sucesso nas passarelas? Quem, de nós, não conhece o velho relógio, impondo as horas, há mais de meio século?
- Vou tomar um banho e mudar de roupa. Inviável comparecer assim, suja e desarrumada. Podem esperar, que antes das cinco horas estarei chegando.
Com passos a princípio indecisos, mas que se tornaram firmes depois, os homens saíram pelo portão, orgulhosos com o fato de haverem, brilhantemente, cumprido seu dever.
No chão, junto à cadeira de Heloísa, uma poça de sangue. Coitada! Diante de tamanho susto, ficara menstruada.
Abracei sua cabeça, beijei sua fronte. Saí dali sem olhar para trás: meus neurônios, como numa dança frenética, jogavam com trilhões de informações, enquanto o sistema neuro-vegetativo respondia, estupidamente, com uma desenfreada taquicardia. Urgia pensar com serenidade.
Tudo estava em jogo. A organização, meus filhos, amigos que nos frequentavam inocentemente, meus alunos, meus professores, anos de trabalho...
Sozinha, dramaticamente sozinha, peguei o primeiro ônibus que passou. De ônibus em ônibus, Coelho Neto ia ficando longe. Tão longe como a dor da separação de um amigo, tão longe como os sonhos da primeira infância, longe como a angústia do irreparável. Tão perto ontem, tão distante agora, do bairro habitado e cantado por Machado de Assis: seu personagem, Brás Cubas passava pelas minhas lembranças:
...“ Eu trato de anexar à minha filosofia uma parte dogmática e litúrgica. O humanitismo há de ser também uma religião, a do futuro, a única verdadeira.”...
Lamartine Babo fazia um delicado verso, naquele cantinho gostoso do “Prato de Barro”. “ Mesmo sem ser Dirceu, gosto também de Marília”, dissera um dia, enamorado como ele só. Como seria o início do verso? Faria uma operação plástica no meu enorme nariz, ou cantaria como Juca Chaves, justificando o que achava uma feiúra? Naquele momento, desejei ter Marcello e Eduardo bem perto, na Avenida Brasil, bem ao alcance das minhas mãos...
( Trecho do livro "Nesta terra, Neste Instante" de Marilia Guimaraes)