De
cima de seus três anos, Marcello tentava
acertar o cinto de segurança, enquanto eu colocava Eduardo em seu assento. Acontecera tão rápido. Rio, Belo Horizonte, Rio, São Paulo, Porto Alegre e
Montevidéu se mesclavam numa fusão de
ruas com caras de alamedas, ondas beijando despretensiosamente os parques
cravados nas montanhas, chimarrão e cafezinho, túnel Rebouças decolando para os
céus do Caribe.
O
cansaço de três dias de angústia e incerteza
invadiam minhas artérias, corriam meu corpo, mas tropeçavam com esta
força que me domina toda nos momentos de decisão.
De
pronto, tudo havia terminado. Qualquer
lugar que fosse, tínhamos chegado. Que
seria de nossos sonhos, ficariam para bem depois. O importante, agora, era sossegar este
coração, tentar controlar o medo, o desespero ante o desconhecido. Duas mãozinhas se prendiam às minhas para
conduzí-las ao futuro.
-Donde está la mujer con los niños?
Uma
voz ríspida ordenou a saída.
Caminhei
desconfiada, olhando ao redor. Tudo
verde.
Seria
uma imensa floresta viva, ou o pânico transformara tudo num campo de guerra?
Militares
camuflados, armados até os dentes, sorriam à nossa passagem. Um deles discretamente acariciou a cabeça de
Eduardo. Confusa, trêmula, carregando
Eduardo e Marcello nos braços cruzei a pista.
Na
saleta, militares entravam e saíam,
cheios de perguntas:
-
Fueron vacunados?
-
Cuales vacunas?
-
Vacinas... Terá dito vacinas! Ah! Sim.
Minha
resposta não pareceu nada convincente.
-
Fueron vacunados?
-
Claro que sim.
Outros
militares entraram carregados de brinquedos, sucos, brinquedos de novo. Outro pipocava o flash sobre nossas
cabeças. Fotos, fotos, fotos.
-
Con quien está el millión de dólares?
Dólares? Que dólares?
-
Eles vieram me trazer e pretendem fazer treinamento.
-
Treinamiento? Que treinamiento?
-
Sei lá. Treinamento militar.
-
Quien es el jefe?
-
Chefe?!?
Caramba,
estamos há quase três dias sem comer, como vou saber quem é o chefe!
O
chefe desmoronou na decolagem.
-
Quien organizó el secuestro?
-
Quê? Quero ver meus companheiros.
Ai, meu deus, que confusão!
- Ellos
están en otro lugar.
-
Quero ver meus companheiros, insisti.
-
Ande, ve a llamarlos!- ordenou aquele que parecia ser o chefe.
Extenuado,
entra André. Sussurrando, explica que
estão todos sendo interrogados. Que o país não recebe sequestradores.
-
Como não recebem sequestradores? Para
onde iremos? E agora, que vamos fazer?
-
Não sei. - contestou.
-
Como não sabe?
De
novo, irrompem pela sala.
-
Como se siente ahora? Y los
muchachos? Fumas?
-
Sim.
Outro
militar entra carregado de cigarros, muitos cigarros.
-
Escoja lo que quieras.
Escolho
um. Não.
Acendo outro. Muito fraco. Faço outra opção. Por fim um cigarro forte, quase um Hollywood. Alívio geral para os pulmões, para o
simpático, para a cabeça. Delícia de
cigarro, o melhor cigarro do mundo.
Depois de tantos dias sem fumar, tragava e tragava, compensando o tempo
perdido.
Por
fim, começava a raciocinar.
-
Os meninos tomaram todas as vacinas, todas.
-
Como? Como?
Por
deus, estou falando, falando e esse militar não entende nada do que eu
digo. Chego a uma conclusão: não falo
espanhol, não sei falar essa língua; eles nunca irão me entender. Passarei toda a noite, e não me
entenderão. Estou exaurida.
Outro
militar se faz presente na saleta.
Não
suporto mais tanta pergunta sem resposta.
Insuportável, suportar tanta falta de comunicação.
-
Conrado, esta és Mirian Martins de Oliveira.
Fevereiro de 1969
O carnaval ficara para trás, deixando a saudade
de um fantástico Jair Rodrigues esbanjando alegria com seu Bloco de Sujos,
enquanto, despreocupada, iniciávamos
mais um ano letivo, com mil projetos didáticos, novas metodologias de
ensino.
A matriz
da escola em Coelho Neto, a filial em Vilar dos Teles, prometia um 1969 de
sucesso e grandes realizações.
De repente, simplesmente de repente, entre raios,
trovões e tremendo aguaceiro, aqueles homens entraram sem pedir licença,
desmoronando tudo.
Uma
folha de papel tarjado em amarelo e verde, onde se lia uma ordem de prisão,
interromperia nesta terra, nesse instante, o futuro.
-
Tenho ordens para levá-la presa, vociferou o que liderava o grupo.
-
Presa? Por quê?
- A
senhora está envolvida com os subversivos - explicou o outro - por fazer uso de
mimeógrafo para propaganda comunista.
-
Mimeógrafo? Subversivos? O senhor deve estar me confundindo com outra pessoa!
- A
senhora está presa. Tem que me
acompanhar.
- Não. Por
que tenho de acompanhá-lo? Não vejo
possibilidade! Sinto muito, não tenho tempo e além de não ter feito absolutamente nada, não estou
preparada. Tenho que me banhar, trocar
de roupa. Estou trabalhando desde as
oito da manhã, são quase duas horas. Agora não é possível. Irei amanhã.
-
Amanhã? Não estamos brincando! – argumentou,
quase aos gritos. Tem que ser
agora! A senhora não entendeu?
-
Sou diretora e proprietária desta escola. O senhor, com certeza, está enganado.
-
Não estou enganado, não. Sua escola
comprou um mimeógrafo, que foi apreendido em mãos de elementos ligados à
subversão.
-
Onde?
-
Em Niterói, num aparelho.
-
Aparelho. O que é isto?
- O
lugar onde se escondem os comunistas.
-
Comunistas? Não eram subversivos?
-
Comunistas, subversivos, tudo a mesma coisa, - explicou nervoso.
-
Ah! Agora me lembro. O mimeógrafo!
Minha escola comprou, sim... mas foi vendido.
-
Vendido!? Como vendido?
-
Sim. Vendido. Heloísa, pegue o recibo da venda do
mimeógrafo!
Atordoada, a secretária não conseguiu se levantar. Estava em choque. Nada sabia de nossas atividades. Talvez
desconfiasse do entra e sai de estranhos, da chegada e saída de caixas e mais caixas lacradas; reuniões no adiantado
da noite.
As notícias de secundaristas assassinados, como
Edson Luiz no restaurante universitário Calabouço, bem no centro da cidade; dos
desaparecidos e das prisões de pais de família, andavam de boca em boca, e
davam o tom da vida política na cidade.
Caminhei decidida até o arquivo, peguei o recibo e
mostrei a folha de papel timbrado, especificando o valor e a descrição do equipamento.
-
Vou levá-lo.
-
Não senhor! Este é o original. Não tenho como tirar cópia.
Marque um horário que levo o recibo.
Desconcertado
diante do inesperado, o militar titubeou.
-
Bem. Mas a senhora tem que comparecer
ainda hoje ao Ministério da Guerra, na Central do Brasil. Sabe onde fica?
-
Claro, claro que sei.
Quem,
da minha geração, moradora da Cidade Maravilhosa, não conhecia a famosa Central
do Brasil, palco dos acontecimentos que contam parte da nossa história?
Do
célebre discurso de Jango, pouco antes do golpe militar, ao cotidiano sofrido
de milhares de habitantes, que transitam, diariamente, do subúrbio ao centro,
em busca do ganha pão, na romaria em busca de trabalho; do sonho da menina do
bairro distante em busca do sucesso nas passarelas? Quem, de nós, não conhece o velho relógio,
impondo as horas, há mais de meio século?
- Vou tomar um banho e mudar de roupa. Inviável
comparecer assim, suja e desarrumada.
Podem esperar, que antes das cinco horas estarei chegando.
Com passos a princípio indecisos, mas que se
tornaram firmes depois, os homens saíram pelo portão, orgulhosos com o fato de
haverem, brilhantemente, cumprido seu dever. De
cima de seus três anos, Marcello tentava
acertar o cinto de segurança, enquanto eu colocava Eduardo em seu assento. Acontecera tão rápido. Rio, Belo Horizonte, Rio, São Paulo, Porto Alegre e
Montevidéu se mesclavam numa fusão de
ruas com caras de alamedas, ondas beijando despretensiosamente os parques
cravados nas montanhas, chimarrão e cafezinho, túnel Rebouças decolando para os
céus do Caribe.
O
cansaço de três dias de angústia e incerteza
invadiam minhas artérias, corriam meu corpo, mas tropeçavam com esta
força que me domina toda nos momentos de decisão.
De
pronto, tudo havia terminado. Qualquer
lugar que fosse, tínhamos chegado. Que
seria de nossos sonhos, ficariam para bem depois. O importante, agora, era sossegar este
coração, tentar controlar o medo, o desespero ante o desconhecido. Duas mãozinhas se prendiam às minhas para
conduzí-las ao futuro.
-Donde está la mujer con los niños?
Uma
voz ríspida ordenou a saída.
Caminhei
desconfiada, olhando ao redor. Tudo
verde.
Seria
uma imensa floresta viva, ou o pânico transformara tudo num campo de guerra?
Militares
camuflados, armados até os dentes, sorriam à nossa passagem. Um deles discretamente acariciou a cabeça de
Eduardo. Confusa, trêmula, carregando
Eduardo e Marcello nos braços cruzei a pista.
Na
saleta, militares entravam e saíam,
cheios de perguntas:
-
Fueron vacunados?
-
Cuales vacunas?
-
Vacinas... Terá dito vacinas! Ah! Sim.
Minha
resposta não pareceu nada convincente.
-
Fueron vacunados?
-
Claro que sim.
Outros
militares entraram carregados de brinquedos, sucos, brinquedos de novo. Outro pipocava o flash sobre nossas
cabeças. Fotos, fotos, fotos.
-
Con quien está el millión de dólares?
Dólares? Que dólares?
-
Eles vieram me trazer e pretendem fazer treinamento.
-
Treinamiento? Que treinamiento?
-
Sei lá. Treinamento militar.
-
Quien es el jefe?
-
Chefe?!?
Caramba,
estamos há quase três dias sem comer, como vou saber quem é o chefe!
O
chefe desmoronou na decolagem.
-
Quien organizó el secuestro?
-
Quê? Quero ver meus companheiros.
Ai, meu deus, que confusão!
- Ellos
están en otro lugar.
-
Quero ver meus companheiros, insisti.
-
Ande, ve a llamarlos!- ordenou aquele que parecia ser o chefe.
Extenuado,
entra André. Sussurrando, explica que
estão todos sendo interrogados. Que o país não recebe sequestradores.
-
Como não recebem sequestradores? Para
onde iremos? E agora, que vamos fazer?
-
Não sei. - contestou.
-
Como não sabe?
De
novo, irrompem pela sala.
-
Como se siente ahora? Y los
muchachos? Fumas?
-
Sim.
Outro
militar entra carregado de cigarros, muitos cigarros.
-
Escoja lo que quieras.
Escolho
um. Não.
Acendo outro. Muito fraco. Faço outra opção. Por fim um cigarro forte, quase um Hollywood. Alívio geral para os pulmões, para o
simpático, para a cabeça. Delícia de
cigarro, o melhor cigarro do mundo.
Depois de tantos dias sem fumar, tragava e tragava, compensando o tempo
perdido.
Por
fim, começava a raciocinar.
-
Os meninos tomaram todas as vacinas, todas.
-
Como? Como?
Por
deus, estou falando, falando e esse militar não entende nada do que eu
digo. Chego a uma conclusão: não falo
espanhol, não sei falar essa língua; eles nunca irão me entender. Passarei toda a noite, e não me
entenderão. Estou exaurida.
Outro
militar se faz presente na saleta.
Não
suporto mais tanta pergunta sem resposta.
Insuportável, suportar tanta falta de comunicação.
-
Conrado, esta és Mirian Martins de Oliveira.
Fevereiro de 1969
O carnaval ficara para trás, deixando a saudade
de um fantástico Jair Rodrigues esbanjando alegria com seu Bloco de Sujos,
enquanto, despreocupada, iniciávamos
mais um ano letivo, com mil projetos didáticos, novas metodologias de
ensino.
A matriz
da escola em Coelho Neto, a filial em Vilar dos Teles, prometia um 1969 de
sucesso e grandes realizações.
De repente, simplesmente de repente, entre raios,
trovões e tremendo aguaceiro, aqueles homens entraram sem pedir licença,
desmoronando tudo.
Uma
folha de papel tarjado em amarelo e verde, onde se lia uma ordem de prisão,
interromperia nesta terra, nesse instante, o futuro.
-
Tenho ordens para levá-la presa, vociferou o que liderava o grupo.
-
Presa? Por quê?
- A
senhora está envolvida com os subversivos - explicou o outro - por fazer uso de
mimeógrafo para propaganda comunista.
-
Mimeógrafo? Subversivos? O senhor deve estar me confundindo com outra pessoa!
- A
senhora está presa. Tem que me
acompanhar.
- Não. Por
que tenho de acompanhá-lo? Não vejo
possibilidade! Sinto muito, não tenho tempo e além de não ter feito absolutamente nada, não estou
preparada. Tenho que me banhar, trocar
de roupa. Estou trabalhando desde as
oito da manhã, são quase duas horas. Agora não é possível. Irei amanhã.
-
Amanhã? Não estamos brincando! – argumentou,
quase aos gritos. Tem que ser
agora! A senhora não entendeu?
-
Sou diretora e proprietária desta escola. O senhor, com certeza, está enganado.
-
Não estou enganado, não. Sua escola
comprou um mimeógrafo, que foi apreendido em mãos de elementos ligados à
subversão.
-
Onde?
-
Em Niterói, num aparelho.
-
Aparelho. O que é isto?
- O
lugar onde se escondem os comunistas.
-
Comunistas? Não eram subversivos?
-
Comunistas, subversivos, tudo a mesma coisa, - explicou nervoso.
-
Ah! Agora me lembro. O mimeógrafo!
Minha escola comprou, sim... mas foi vendido.
-
Vendido!? Como vendido?
-
Sim. Vendido. Heloísa, pegue o recibo da venda do
mimeógrafo!
Atordoada, a secretária não conseguiu se levantar. Estava em choque. Nada sabia de nossas atividades. Talvez
desconfiasse do entra e sai de estranhos, da chegada e saída de caixas e mais caixas lacradas; reuniões no adiantado
da noite.
As notícias de secundaristas assassinados, como
Edson Luiz no restaurante universitário Calabouço, bem no centro da cidade; dos
desaparecidos e das prisões de pais de família, andavam de boca em boca, e
davam o tom da vida política na cidade.
Caminhei decidida até o arquivo, peguei o recibo e
mostrei a folha de papel timbrado, especificando o valor e a descrição do equipamento.
-
Vou levá-lo.
-
Não senhor! Este é o original. Não tenho como tirar cópia.
Marque um horário que levo o recibo.
Desconcertado
diante do inesperado, o militar titubeou.
-
Bem. Mas a senhora tem que comparecer
ainda hoje ao Ministério da Guerra, na Central do Brasil. Sabe onde fica?
-
Claro, claro que sei.
Quem,
da minha geração, moradora da Cidade Maravilhosa, não conhecia a famosa Central
do Brasil, palco dos acontecimentos que contam parte da nossa história?
Do
célebre discurso de Jango, pouco antes do golpe militar, ao cotidiano sofrido
de milhares de habitantes, que transitam, diariamente, do subúrbio ao centro,
em busca do ganha pão, na romaria em busca de trabalho; do sonho da menina do
bairro distante em busca do sucesso nas passarelas? Quem, de nós, não conhece o velho relógio,
impondo as horas, há mais de meio século?
- Vou tomar um banho e mudar de roupa. Inviável
comparecer assim, suja e desarrumada.
Podem esperar, que antes das cinco horas estarei chegando.
Com passos a princípio indecisos, mas que se
tornaram firmes depois, os homens saíram pelo portão, orgulhosos com o fato de
haverem, brilhantemente, cumprido seu dever. Continua..