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NESTA TERRA, NESTE INSTANTE - Parte 4


Angustura -  A Macondo Mineira
- Primeiro entram vocês, depois  vou eu.
- Nós três num motel, Carlos?
- Claro, onde você quer que eu durma? Aqui fora, com certeza, está cheio de mosquitos, e, além do mais, estou exausto, estou há dois dias, praticamente, sem dormir. O
moralismo fica para depois que acordarmos, tá bem? - sorriu.
Nenhuma palavra a mais consegui registrar. Acordamos na avançada madrugada, ainda fatigados pela tensão do dia anterior. Preparamo-nos rapidamente. Carlos saiu às escondidas, regressou à portaria pedindo que nos despertassem.
Naquele dia, andamos a esmo, em busca de uma alternativa urgente de moradia para os próximos dias.  Indispensável buscar Marcello e Eduardo. O lugar onde se encontravam não oferecia condições de segurança.

Passei todo o dia muito triste, beirando a depressão. Não tinha para onde ir. Que fazer? Qual direção tomar? O que significava, realmente, clandestinidade?
Não ver os amigos. Tudo bem, estava descartado. Esconder-se entre perucas... Óculos? Como são incômodos! Dois vidros  presos  por pernas  nas duas orelhas, descansando, inescrupulosos, sobre o septo nasal.
Quando não se tem visão, uma benção. Quando para compor um personagem um desastre...
 O quê é, de fato,  a clandestinidade? Como vivê-la?  Como os cristãos na antiga Roma? Esperar dois mil anos pela tradução dos afrescos das catacumbas?
Clandestinidade é a expressão mais sofrida e iluminada  nesta história.
É o obscuro. A noite em plena luz do dia. É estar na multidão tentando se confundir dentro dela. São as estradas sinuosas da minha pátria gentil. São vozes sussurradas no burburinho das ruas.  É o medo do nada. Mas é, também,  o despertar pleno da  coragem. É o nascimento. É seguir em frente, sem temores. É ir em busca do encontro definitivo com a liberdade.


A noite adiantara seus passos, quando decidimos visitar as crianças. Fazia um bem danado olhá-los dormindo. Beijá-los, calidamente para não despertá-los. Fazer as mamadeiras. Deixá-las prontas. Regressar quando as últimas estrelas corriam apressadas para dar passagem à alvorada.  
Tantas noites percorremos, incansáveis, as estradas que levam a Minas Gerais. Tantas madrugadas, regressamos, apressados, para o mar.

Naqueles dias, nos transportamos para Sepetiba. Falar alto nem pensar, até o cochicho poderia ser ouvido naquele quarto minúsculo, com janela e basculante do banheiro virados para o  corredor.  

Estava sozinha, como em dias anteriores, quando começaram as dores abdominais. Cada vez mais fortes. Cada vez mais contantes.
À noite, reclamei que quase não podia caminhar. Havia ido até o mar e regressara desesperada.
            - Não há de ser nada, devem ser apenas gases, você quase não tem comido, - comentou Fausto.
- Não estou comendo por causa das dores. Tenho ânsias de vômito.
- Amanhã vamos ao médico. Fique tranquila.

Pela manhã fomos ao ginecologista. Qual não foi meu espanto! Jorge Portugal, um velho flerte dos tempos da faculdade. Não  podia ser reconhecida! Felizmente passei despercebida na sua vida.
            - Tenho as trompas ligadas.
            - Flatulência. Com este remédio, tudo resolvido. As dores vão ceder aos poucos. Amanhã você nem se lembra mais delas.
Esperançosa, tomei o famoso Espasmo Silidron. Tentei dormir.  Em vão. As dores aumentavam a cada minuto.
- Necessito de um médico, Fausto.
- Para que outro médico, se sabemos que são gases? Esse nervosismo atrapalha. Tente se acalmar que a dor passa.
Outra noite desvelada. Na manhã seguinte, não podia sair do quarto. As cólicas eram insuportáveis. São gases, tento convencer a mim mesma. Melhor que eu caminhe até a praia e respire  ar puro. Quem sabe, caminhar? Caminhar sempre faz bem.  Regresso ao hotel, quase à beira de um desmaio. É impossível seguir caminhando...
            - Precisa de ajuda? Sente-se mal?-  perguntou o gerente.
- Sim, mas vai passar.
Esperei durante todo o dia. Fausto regressou do Rio, entrada a madrugada.
-                          Um médico pelo amor de deus. - pedia chorando - Não suporto mais esta dor! Leve-me para um hospital!


Avenida Niemeyer 
Entrei pela manhã numa clínica em Campo Grande. No final da tarde, diagnosticaram:
- Gravidez tubária. - informou o médico de plantão.
- Tenho as trompas ligadas!
- Algumas vezes acontece.- explicou o plantonista. 
Às pressas, em choque, dei entrada na unidade cirúrgica.
Quando despertei, Juarez, Fausto e Carlos sorriram felizes. 

De pé, Maria Auxiliadora, estudante de medicina, chegada naquele dia de Belo Horizonte, olhava curiosa. Entrara também  na clandestinidade. Sua primeira tarefa: acompanhar-me no hospital.

Auxiliadora, inquieta, perdidamente apaixonada por um companheiro, andava por todos os recantos da clínica na ânsia, de quem sabe, encontrá-lo.

- Olha as fotos da Manchete! - folheava a revista, banhada em sangue vietnamita.
Guerra por todas as partes.  As imagens estampadas nas revistas  eram apavorantes. Difícil conter a tristeza. Estavam massacrando o Vietnã. Modernamente equipados, os boinas verdes queimavam vilas inteiras, estupravam mulheres,  assassinavam crianças, retirando-as ainda vivas do ventre materno, a golpes de baionetas. Espreitando entre os arrozais, lutando bravamente, os vietinamitas  iam ganhando terreno. Chorava, olhando a barbárie desencadeada sobre o povo vietnamita.
E os mortos pela fome em  Biafra! Aterrorizava olhar o mundo, acuada em uma cama de um hospital.
Da ruptura da trompa, estava salva.
Como salvar do sofrimento milhões de crianças morrendo de fome? Como transformar o mundo, para que essas cenas hediondas não viessem a ser vistas por meus filhos? Pior ainda, pelos filhos dos meus filhos? Como diminuir as injustiças sociais?
- Ouvi pelo rádio, quando estava no refeitório, que haviam assaltado o banco Andrade Arnold. Foi agora mesmo, no centro do Rio - despertou-me das minhas divagações Auxiliadora.
- Foram eles, não foi? – pedia-me a confirmação. 
- Não sei...
- Claro que você sabe. Conte para mim. Pensa que não vi os lenços quadriculados?
- Deixa de bobagem. Fique quieta.- pedi com firmeza.
- Você não quer falar, tudo bem. Sei que não estou enganada.
Ao cair da noite, chegaram os três sorridentes e felizes.
- Poderemos, enfim, sair do hospital sem mais problemas, - falou Juarez.

Maria Auxiliadora partiu naquela mesma noite. Meses mais tarde, soube da coragem de uma jovem, enfrentando a polícia, numa casa invadida no Méier .
Anos mais tarde, soube de seu suicídio no metrô na Alemanha. A tortura e o exílio foram mais fortes do que o amor. Pelo menos, ela viveu a tempo de ver o Vietnã sair vitorioso da guerra.- pensei, relembrando sua cara apaixonada.

-Deixaremos o hospital bem cedo, o mais rápido possível. Esquentamos demais o lugar.- alegou Juarez.

- Como são esburacadas as ruas desta cidade. Tudo dói! - reclamei.
-                          Aguenta mais um pouco.- pediu Carlos. Vamos passar por São Cristóvão, deixar estas armas e daí para Copacabana.
-                          Outra vez  Copacabana? Não aguento mais Copacabana!..
-                          Você adora Copacabana! Sempre fala que é linda, a mais linda do mundo e agora não quer? - brincou Carlos

O companheiro aguardava ansioso preocupado com a demora, quando por fim chegamos ao aparelho. Descarregaram as metralhadoras. Seguimos para a zona sul.

Fazia dias que não sentia nenhuma indisposição, mas agora essa dor  no ventre, e a sensação de umidade beiravam o insuportável.
-  Carlos, alguma coisa está errada comigo.
-  Um pouquinho mais e chegamos.
     - Sempre  um pouquinho mais... Por que você decidiu deixar aquelas armas logo agora, que estou saindo do hospital?
- Ora bolas, porque não pude antes. A situação está preta. Você não viu? Muita gente chegando. O Brasil está ficando em polvorosa, o movimento está crescendo em todo o país. E a ditadura perdida buscando o fio da meada.
Você tem que ficar boa logo, precisamos também da sua cooperação.
-  Onde a gente vai se esconder?
- Num aparelho na Nossa Senhora de Copacabana. Não é lá grande coisa, mas como é provisório...
            - E os meninos? Quando vou buscá-los?
- Breve. Passada a recuperação. Também acho que Minas não é o ideal. Aquela vila é muito pequena. Muitos curiosos. Seguramente, nos viram chegar e sair pela madrugada, apesar dos cuidados: faróis desligados, o mais lentamente possível, para afogar o barulho do motor... mas, como dizem os antigos, seguro morreu de velho.
            - Logo, logo, um lugar definitivo, assim espero. – ansiava Carlos.
- Carlos, pare de falar a dor está aumentando. A saia está toda  molhada!
- Deve ser alguma sensação por causa do tempo, dentro deste carro.

Entrei  procurando o banheiro, queria urinar. Mais de três  horas metida naquela Kombi! Onde fora parar meu fusca, tão lindo!?
- Uma surpresa! - chamou Fausto esbanjando alegria.
Da janela pude ver  um VW, tinindo de novo, bem diante dos meus olhos.
- Para você.
Nem dois minutos haviam passado e Carlos já pedia a chave emprestada.
-  Para pegar  umas coisinhas. - alegou.
Voltou, finda a tarde,  arisco, com jeito de quem fez travessura querendo e não querendo explicar.
- Ora bolas. Diga logo o que passou, fui dizendo.
- Bateu com o carro?
-Não.
-Então o quê?
-É.  Fui levar um material.. melhor veja você mesmo!
Um enorme buraco no forro do teto. Nem uma voltinha no quarteirão, e meu fusquinha  havia sido batizado com um vil buraco. Por que me lembro agora do Volkswagen? Tenho a roupa encharcada  de sangue. Dói muito.
- Carlos, veja meu estado. Ai, meu deus,  sangue por todos os lados. Me acode, anda.
Vamos remover a faixa devagarinho, sem pressa.
- Não toque.
- Que é isto?
- Ai, ai, ai...  estou com o intestino para fora! Estou com a barriga aberta! Ai ai...
- Calma! Por favor. Calma! - olhava apavorado.
-          Calma é o caralho! - gritei. Como resolvo isto agora?
-          Espera. Deixa eu ver.
-          Cale a boca! Cale a boca!
            - Vou buscar um médico. Fique deitada, quietinha. Volto rápido.
Numa poltrona desconhecida, num minúsculo apê de Copacabana, ouvindo o barulho enfurecido de carros, dos que voltam para casa exauridos, depois de mais um dia de trabalho, muitos sem esperança, sem presente, outros cheios de crença no futuro, uns felizes, uns tristes. Todos,  infinitamente todos, desconhecendo a minha dor. E se o Carlos não volta?... Será que alguém sabe que estou aqui? Onde está o Fausto? Carlos  disse que ele teve um compromisso inadiável. O Juarez? Há muito não via ninguém, nem Rodolfo, nem o Lara. Desde a ida para Sepetiba,  meu contato era somente com os três. Ouço um ruído de chaves. Vozes.
Entram apressados.
-          Este é o Ivan. Ele é médico... companheiro, sabe? Vai resolver o seu problema.
-          Hum... Vamos suturar aqui mesmo. Não tenho outro remédio. Não podemos levá-la a um hospital. - explicou Ivan.
-          Segure a minha mão, não conseguimos  anestesia.- comentou Carlos.
-          Sem anestesia?
-          É. Você aguenta. Precisa aguentar!  Segure a minha mão. - pediu Carlos. Vamos, segure. Fique calma. Não grite. Lembre, ninguém pode ouvir, tá bem?
  - Tá bem, murmurei esgotada. 
Viajei na dor. Só me dei conta quando passei a mão pela fronte e meu suor era de sangue. As mãos do Carlos sangravam. Nem um ai. Nem um lamento havia saído dos seus lábios. Debruçou sua cabeça sobre a minha e soluçamos em  silêncio. O pior havia passado. Antibióticos e curativos foram a tônica dos dias que se seguiram. Juarez, Carlos e Fausto se revezavam, fazendo-me companhia. Já não podia, nas madrugadas, enfrentar as estradas. Chegar  furtivamente a Angustura, a Macondo mineira, que guardava cuidadosamente o meu “Elemento 74” ( Tungstênio, apodo carinhoso dado a Marcello)  e  o meu Alemãozinho (apelido para o Edu, um anjo louro caído de algum asteróide). Dor e saudade se mesclavam num todo agonizante, dilacerando os sonhos do futuro próximo.
O inesperado se encarregaria de mudar os nossos projetos. Caberia a mim escolher um novo desvio.

Este coro diante das Lojas Americanas é insuportável. Desde a manhã,  até a noite, crianças perfiladas entoavam canções religiosas, estourando meus tímpanos. Suas caras tristonhas e famintas me revoltavam. Que triste, meu país! Quanta miséria de pão, de alma, de sentimentos.

A situação de Marcello e Eduardo  estava  ficando difícil.
- Vocês podem ter sido seguidos. - alertou minha irmã.
            O farmacêutico andava perguntando demais... “Por que estas crianças estão aqui?  Por que os pais não vêm buscá-las?” - ousava perguntar. Ora bolas!  Primeiro, o que você tem com isso? Eles estão viajando! Qual é o problema? – minha irmã revidava. “Estou sabendo que a  mãe delas vem pela madrugada.” Que loucura! Vocês inventam cada coisa! - Helenice tentava despistar.

-          Vamos pegar  as crianças imediatamente!- pressionei.
- Se forem presas, todos nós teremos que nos entregar. - concordou Juarez.
- Pensaram nisso? Pode significar uma  irreparável perda para a organização!- concluí.

Contatamos Fábio, nosso cunhado. Coube a ele a difícil tarefa de ir a Minas pegar os meninos.
No sábado, às 15h, em frente da embaixada americana, no local mais seguro da cidade, Fábio, corajosamente nos entregou Marcello e Eduardo.

Felizes, risonhos, chegamos ao minúsculo aparelho. Trinta e tantos dias de ausência, de medo de perdê-los, de pânico de que fossem presos. Agora sim, se tudo desse errado não importava, estávamos  juntos de novo.
Nos dias que se seguiram tentamos novas soluções. Ir a Cuba era uma saída plausível.
- Vamos criar condições para a viagem. - planejou Juarez. Um sequestro, por exemplo.
-          Agora não dá mais para sair legalmente do país. Vamos avaliar todas as condições. Uns dois ou três meses, isto se não encontrarmos outra saída.-  finalizou Fausto.
-          Temos novas perspectivas. Novos companheiros estão ingressando na organização. É provável que você fique por aqui mesmo. - considerou  Juarez.

De novo, a avassaladora angústia. Um aviso. Uma premonição.
- Não posso continuar aqui. Nem um minuto mais.
            - O que é isso? Não tenho para onde levá-la! - disparou Carlos
- Aqui, eu não fico. De jeito nenhum. Inventa um lugar. Qualquer coisa, pelo amor de deus!
            - Vou inventar. Vou sair e retorno num minuto.
Levantou, bateu a porta apressado. Chegou, quase finda a tarde, brincalhão como sempre.
-          Encontrei uma casa em Itaipava, acertei o aluguel com a proprietária. Iremos para lá ainda hoje. – participou-nos, contente.

Era noite, quando a polícia invadiu o aparelho em Copacabana, e as crianças  dormiam  angelicamente na pacata cidade aos pés das Agulhas Negras. Salvos, mais uma vez.

Maio 1969

Em alguns dias que se seguiram, Carlos, às vezes aparecia na madrugada . A maioria dos outros dias, passávamos sozinhos. A cicatriz sarava aos poucos. O peso dos meninos  dificultava a cicatrização. Vivia assustada. Ora despertada na madrugada pelos treinamentos dos militares das  Agulhas Negras, ora questionada pela proprietária que se encantara  com o temperamento quixotesco de Carlos.
-          Por que ele deixa vocês sozinhos tanto tempo? - perguntava diariamente.
-          Ora, não foi possível desvincular totalmente do trabalho. – desculpava-me.
A presença cotidiana dessa senhora, dificultava nossa temporada na serra. A casa era apenas para veraneio, mas todos os dias ela aparecia. Hospedava-se na cabana que possuía, do outro lado da rua, e vinha, a todo momento, vasculhar a nossa vida.
-          Estamos em apuros. - comentei  numa das noites em que vieram nos visitar. A ausência de vocês é suspeita. Esgotaram-se as desculpas. Melhor regressarmos ao Rio e lá decidirmos o que fazer. - adiantei.

No domingo, todos participaram da comemoração do Dia das Mães: proprietários, caseiros e filhos.  Após o almoço, Fausto regressou ao Rio, de ônibus,  com a filha do caseiro. Carlos ficou, para levar-nos na segunda-feira.   
O ranger de trilhos nos despertou curiosos.
- Fausto?  Bonde, a uma hora dessas? Vou abrir a janela!
- Não! Estamos num quarto de frente para  a rua. 
- Quê!? O que é isso de não poder  abrir a janela? Que barbaridade é essa?
- Deixe a janela fechada; você esqueceu?
- Os quartos que dão para o pátio estavam ocupados?
- Nem todos, mas estes são mais seguros. Os do interior dão para a varanda. Aqui podemos conversar melhor e as crianças ficam mais à vontade.
- À vontade, com a janela fechada!? Ah! Vou sair, fazer as mamadeiras, saber do café da manhã...
Não posso acreditar. Em Santa Teresa, sem a possibilidade de olhar a rua. Em Santa Teresa que é linda, cálida, charmosa, musical, mas  num hotel ao nível da calçada, de frente para a rua.
A manhã estava divinamente linda. Lá embaixo, a cidade se espreguiçava com os primeiros roncos dos canos de descarga, com o frear dos ônibus, despejando operários apressados a caminho de mais um dia de trabalho.
copeira.
General? Ouvi bem? Isto é uma alucinação! Estou louca, sem dúvida. Um general! No pequeno hotel,  na minha frente!? Só mesmo no Rio de Janeiro. Só mesmo na fantástica América latina. Há tantos dias, fugindo incessantemente deles... Que ironia, diante dos meus olhos, quase me tocando,  um  General.
- Bom dia! – sorri.
- Bom dia. Linda manhã esta. - respondeu alegremente.
Após o almoço, Carlos  e  Juarez passaram para ver como estávamos. Conversamos longamente sobre os próximos dias.
- Paciência. Aos poucos vamos encontrando a solução. - proferiu Juarez.
- Precisamos definir qualquer coisa, estou beirando a loucura. Ficar parada não é do meu feitio; daqui a pouco serão três meses sem fazer nada! De lá para cá, daqui pra lá. Sem perspectiva de saída desta vida. Qualquer coisa é melhor que nada. Como andará a escola?
-          Por ora esqueça a escola, o trabalho. Tem gente demais entrando na clandestinidade. Cautela, equilíbrio e paciência. -  interferiu Juarez, sempre terno, centrado, administrando o  caos. Aos poucos estamos ficando mais fortes, daqui para a frente ganharemos terreno. Estamos nos consolidando. Breve, você verá que valeu a pena.
-            Eu não quero ficar aqui. Este lugar é muito estranho e me parece muito perigoso. Aqui vivem aposentados de classe média alta, tem até general!
           
- Se você quiser, pode ir para Belo Horizonte, com a Maura.- ofereceu Carlos. Ela  conhece vocês. Além do mais, sabe da minha situação.  É uma saída, antes da ida para o sul de São Paulo.
- E o sequestro?  Cuba ?
- Não gosto hoje dessa alternativa. A ilha é muito definitiva.  Você pode ser muito útil na organização, aqui mesmo.- asseverou Juarez.
 - E os meninos?
-          O lugar para onde pensamos levar vocês tem uma boa infra-estrutura, tanto para as crianças, quanto para você que vai executar uma missão especial. Quinta-feira teremos uma ação importante. Necessitamos do Luís aqui. Podem viajar na Sexta.  Ia me esquecendo... Lembre-se, não pode mais chamá-lo de Fausto. – recomendou, sorrindo.  
- De hoje a sexta... 4 dias. - concordei.
Na quarta-feira, amanheci aflita. De novo aquela estúpida angústia. Luís saiu cedo. Carlos chegou à tarde.
Sentados no jardim, olhando a Central, disparei:
-          Quero ir embora hoje.
-          Hoje?
-          Nem mais um dia.
-          Não combinamos que seria na sexta-feira? 
- Combinamos, mas eu quero hoje.
- Você vai viajar sozinha?
- Vou.
- Bem, temos que ver se há passagens, as coisas não são assim.
-          Vá até a Central e verifique. Tem que ser hoje. – cochichei, quase aos gritos.
Pouco tempo depois, retornava com os bilhetes.
- Tudo bem, você viaja hoje.
Arrumei rapidamente as poucas coisas que nos restavam daqueles últimos meses. O certo é que não estava feliz. Interiormente, sabia que estava agindo da maneira mais correta. Uma força me lançava para a frente, apesar do medo, da insegurança, da angústia do desconhecido.

Chegamos à estação em cima da hora. Tudo que nos tocava fazer, daqui para adiante seria assim: em cima da hora. Marcello começou a chorar quando entramos no vagão. Com a cara banhada em lágrimas,  colada ao vidro,  víamos ficar para trás todo o nosso passado: os laços que me ligavam a Luís, minha família, amigos. Só me restavam : Cell, Edu e o incógnito.
Na  plataforma, Luís e Carlos disfarçando as lágrimas,  viram o trem se afastando devagarinho, enquanto partíamos, corajosamente, rumo à incerteza. Apesar dos seus apenas dois aninhos, muitos anos passaram para que Marcello assimilasse  aquela despedida.

A manhã de sol morno, timidamente cinzenta, recebeu-nos desconfiada. Tomei um táxi e, pouco depois, estava diante de uma família como poucas: linda, solidária, transbordante de ternura, mineiramente discreta e, sobretudo, amiga.
Nenhuma indagação, nenhum questionamento. Carlos e Luís chegam sexta-feira, foi a única explicação.
O melhor quarto. Um montão de flores, banhos, chás, leite, bolos de fubá, um corre - corre de atenções ilimitadas.

Casa da Maura. Uma mãezona forte, segura, decidida, sofrida, muito sofrida, mas pronta  para qualquer intempérie. Uma varredora de tristezas.
Fora a minha angústia, acocorada no lado esquerdo do meu ser, escondida de todos e de tudo, o dia transcorreu tranquilo.
Enquanto fazia as famosas mamadeiras de leite em pó, o qual nervosamente se embolava, se a água não estivesse morna, todos souberam da notícia, dada com muito ênfase no Jornal Nacional.
Menos eu.  
Maura chegou à cozinha, controlando o choro, abraçou-me forte e se debulhou em lágrimas.
- Não chore Maura, você vai se acostumar à falta dele. Perder um companheiro de anos é difícil. Nem sei como reagiria. O tempo se incumbe de amenizar a dor. Não chore. Carlos está bem, seus outros filhos também, não fique triste assim.
- Vou me acostumar, pode crer, foi só um momento de fraqueza. - balbuciou Maura, num soluço. Você chegou assim, tão de repente... Sozinha. Deu - me uma saudade enorme do meu velho. Ele não teria partido tão cedo, se não fosse essa maldita ditadura. Também, ver o nosso filho preso, torturado... Foi demais para o seu coração.
- Eu sei. Carlos também sente muito a falta dele. Afinal, não faz tanto tempo que seu marido morreu.
            - As crianças vão ser ótimas para mim. Elas têm o dom de  colorir o mundo.
Na manhã seguinte, Maura não trouxe os jornais do Rio.
- Esgotaram cedo. - justificou. Amanhã levanto bem cedo, compro o Globo.
Como ainda não podia sair (a ordem era ficar em casa até a chegada dos dois), não tive outro remédio a não ser me conformar com a notícia de que não teria notícias.
            - Chegam poucos sabe? Aqui é Belo Horizonte. Os jornais do Rio não são tão lidos.
Oba! Será que os mineiros nem querem saber da Cidade Maravilhosa? Impossível, é que são ávidos mesmo de notícias.

Sábado. Como dizia Vinícius, “tudo porque hoje é sábado” Carlos abriu a porta do quarto devagarinho e me olhou. Tentei visualizar além de seus ombros. Ninguém. Olhei no profundo de seus olhos. Estavam marejados em lágrimas; envolveu-nos, então, em seus braços chorando baixinho.
- Cadê o papai?
- Ele não pode vir hoje. Virá depois.
- Não! Eu quero o papai!
- Olha, Marcello, o papai teve que fazer um trabalho de urgência e chega na semana que vem.-  esforçou- se para falar.
- Quando é a semana que vem!?
            - Bem, hoje é sábado. A semana que vem é depois que vier outro sábado.
-          Quando vem outro sábado?
-          Depois de domingo, vem a segunda- feira, depois terça-feira. O sol vai dormindo e acordando, e chega o sábado.
-  Tá bem, vou esperar o sol dormir e acordar. Viu Edu? O papai vai chegar depois do sol dormir e acordar.
Meu desespero chegara ao limite. Precisava ouvir a verdade.
- O que aconteceu?
-  Ele foi preso.- sussurou aos meus ouvidos. Não sabemos nada, foi baleado. Até agora não tivemos notícias fidedignas. Uns médicos amigos nossos estão tentando obter informações.  Sabemos, apenas, que deu entrada no Souza Aguiar com vida.
-          Ninguém diz nada. Você sabe, afinal ele era assessor do Jarbas, Ministro da Educação.
-          Como foi acontecer isto?
            - Uma cagada. No dia seguinte a sua partida, fomos dar cobertura a uma ação para pegar um carro. Na hora H, o companheiro que estava junto se assustou. Luís não podia vacilar,  foi junto. O dono do Chambord  correu ao telefone público, chamou a polícia e deu as dicas do carro.
            - Simca Chambord laranja.
            - Laranja? Quantos Simca Chambord laranjas tem no Rio?
            - Imagina! Dois ou três.
            - Meu deus!
            - Na praça da Bandeira, viram o carro. Perseguição total. Tiroteio. Foi o que pudemos ver pela televisão.

Vi, por fim, os jornais. Maura, sigilosamente, os havia guardado no quarto da empregada. Luís parecia morto. Caído na rua, todo ensanguentado.
A dor não se traduz, se sente. Todos os meus órgãos sentiam. Não podia ser verdade, Luís não estava morto. Não podia estar morto.
Perdida, sai com Carlos para chorar um pouco. Não podia desestabilizar ainda mais as  crianças. 

Por mais de duas horas, percorremos as ruas da cidade. Jamais me lembrei delas. Não sei de qualquer esquina, quiçá uma linda praça, uma árvore interessante, nem mesmo sei se tem montanhas.
            Sufocado pelas lágrimas, Carlos disparou:
            - Você tem que ir embora hoje. Uma companheira vem encontrá-la às duas horas, para deixá-la em lugar seguro.
            - Que isso, em lugar seguro? Onde?
- Também desconheço. Em algum momento encontrarei vocês de novo.
Não podia acreditar. De novo! Ninguém está preparado para tanta violação.
- Hoje mesmo tenho que regressar ao Rio.
Se pudesse, diria: não me deixe, por favor! Não posso ficar sozinha. Não agora. Mas, sabia que esse caminho não tinha volta.

Antes das duas horas chegou Inez. Que bom que foi Inez Ettiene. Trazia no olhar a garra dos guerreiros, a força dos tornados.  Olhou sem compaixão. Explicou-me que ficaríamos na casa de uns simpatizantes até o final da tarde. Estava procurando, urgentemente, um lugar para ficarmos.

A família que nos recebeu nos trancou em uma habitação, sem uma palavra, um gesto de ternura, um copo de água. Nem um ruído, um abrir de torneiras, uma descarga, uma fala perdida. Nada. Silêncio.
Eduardo dormia...
          - Quero água. - pedia Marcello.
            - Não tem, Cell.  Eu quero, mãe.
            Vamos mexer bem a linguinha, que a boca enche de água.
            - Assim , assim: Lá-rá-lá-rá-lá...
            - Quero fazer xixi.
            - Bom, então vamos brincar de fazer na mamadeira.
Estória atrás de estória, driblando o tempo, distraindo minha criançada brasileira, como diz Luís.
            - Vamos embora. Não quero ficar aqui.
            -  Sabe aquela moça que nos trouxe, ela vai chegar logo. Vamos beber muita água, fazer xixi na privada, tomar banho, comer, depois dormir numa cama bem quentinha.
A espera é a  pior das sensações. É falsa, oca, sofrida, desbotada, dolorida, eufórica, psicótica, esquizofrênica. Foram cinco horas de terror. Havia escurecido, quando chegou  Inez.
-          Me perdoe a demora. Não foi fácil conseguir um lugar. .. cont,

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