1 de
Janeiro de 1970 - Aeroporto de Carrasco -
Montevidéu - Vôo 114 - Dez anos da Revolução Cubana.
Marcello
e Eduardo correm pelo aeroporto, arregaçando a roupa à altura da cabeça,
desenfreados, eufóricos, arteiros.
Um
guarda passa, ora para lá, ora para cá olhando encantado a alegria dos
dois, que um ano de clandestinidade não
logrou aplastrar.
- Venham cá, meninos! - seguro os dois pelos braços
- Quietos!- Sorrio para o policial que se detém com as travessuras inesperadas
de Cell e Edu.
- Vamonos niños, tranquilos. Después ustedes juegan.
Ahorita van a entrar en el avión. - diz o policial.
Estão
felizes de regressar para verem o pai. -
expliquei.
Com
o olhar, busquei cada companheiro.
-
Passageiros do vôo 114, dirijam-se ao portão de embarque, ouvi em
ecos...
Dali
para a frente, a sorte. Todos os detalhes haviam sido repassados, exceto o
inesperado. André, Severina, Conga e Athos embarcam.
Acompanhada
pelo olhar vigilante de Andrada, carregada de bolsas, crianças, passaportes e
arma, deixando para trás todo o medo , incerteza e inquietude dos últimos dias,
fui a penúltima a entrar. Andrada, se
adiantou à aeromoça e, delicado, ofereceu
sua ajuda:
-
Bolsas e crianças não combinam!
-
Obrigada! - agradeci.
Sentei,
estrategicamente, num dos últimos assentos. A qualquer imprevisto, estaria fora
do alcance dos demais passageiros. André sentou-se no banco da frente para me
dar cobertura. Conga se acomodou no banco de trás.
Terminei
de colocar o cinto de segurança em Eduardo, acertei o de Marcello, apertei o
meu e a voz serena da aeromoça desejou-nos uma boa viagem.
- Dentro de uma hora estaremos fazendo escala em
Porto Alegre.
Como escala
em Porto Alegre? E São Paulo? O vôo era direto para o Rio de Janeiro. Como agora esta mudança de
rota? Falta de passageiros? É normal.
Atentos
à decolagem, ansiosos para começarem a viver os anos 70, ninguém notou quando o
passageiro estrategicamente posicionado
levantou-se e entrou na cabine do comandante.
O
Caravelle ainda ganhava os céus, quando Andrada ordenou a mudança de rota.
- Isto é um sequestro. Mude a rota para Cuba, comandante.
A luz vermelha continuava acesa, e a voz de
Athos anunciava, para os passageiros, o
sequestro, lendo o manifesto escrito para a ocasião.
Falava
das prisões, das torturas, dos companheiros assassinados, da ditadura
brasileira.
- Este sequestro tem dois objetivos:
levar para Cuba os filhos de um
companheiro preso e torturado pela ditadura brasileira e reverenciar a Che
Guevara.
- ...comemorar a Revolução Cubana. - corrigi
baixinho.
Fazia dez anos que Cuba estarrecia o mundo. Pequena,
aparentemente frágil, sem recursos naturais, derrubara a ditadura de Fulgêncio
Batista e se declarara socialista.
“Se
dar ao povo educação e saúde é ser socialista, então somos.”- dissera
Fidel Castro, na época da fracassada invasão dos americanos à Bahia dos Porcos
- Playa Girón.
Há
dez anos, que o cidadão cubano resistia bravamente para manter sua soberania.
Fazia dez anos. O Brasil também podia, imaginei sonhadora.
Todos
ouviram espantados. Nenhum comentário. Pouco a pouco, refeitos do susto, um
suspiro aqui, um ai do outro lado, uma observação mais à frente, um grito
histérico da senhora, quiçá alheia aos
acontecimentos dos últimos tempos.
-
Esta aeronave não tem autonomia de vôo.- contestou o comandante. O
Caravelle PP-PDZ, explicou, só pode voar por duas horas. Não comporta mais
combustível, e além do mais, está em pane. Voar para Havana, nem pensar.
Conga,
o companheiro sulino que entrara no sequestro nos últimos dias de preparação da
ação, conhecedor de algumas manobras de aviação, foi
requisitado à cabine.
- Borges, o co-piloto, alertou sobre os problemas
que certamente surgirão.- informou André.
- Não chegaremos a Havana. Vamos parar em Porto
Alegre para trocar de nave. - sugeriu Amaral.
- Porto Alegre? Não. Não voltaremos a solo
brasileiro. Temos que chegar a Cuba de qualquer maneira sem sair deste avião.-
sentenciou Andrada.
- Não vejo saída. Vou falar com a torre de Buenos
Aires. Esta aeronave tem que ser reabastecida. Temos problemas legais.
Autorização de pouso na Argentina, pagamento de combustível. Temos burocracias a cumprir. – mencionou Amaral, o
comandante do Caravelle.
- Vocês não entenderam? Isto é um sequestro!
- Entrem em contato com o aeroporto
de Buenos Aires, peçam permissão de aterrissagem e expliquem a situação. Eles
vão entender. Isto é sério. - concluiu.
Ezeiza
– Buenos Aires. 19:00
Trinta
minutos depois, aterrizávamos em Ezeiza - Buenos Aires, para abastecer o
avião. O manifesto lido a bordo, deixado
com os Tupamaros, chegara às redações dos jornais. Agências internacionais informavam ao mundo a notícia de um sequestro num país que
escondia sua história aplastada pelas botas militares.
O
sequestro tomava um novo rumo. O nome de cada um dos sequestradores havia sido
divulgado. A presença das crianças, como parte da ação, também.
De
nada valera a decisão de não mencionar meu nome, nem o dos meninos, nem a
presença de uma segunda mulher para cobrir a ação, na possibilidade de que algo
desse errado, como colocaram Andrada e André, pouco dias antes em Porto Alegre.
Todo
o cuidado e cautela, daí por diante, seria pouco. Uma pequena distração, e um
passageiro mais afoito poderia pegar uma das crianças e fazê-la de refém. Mudei
de poltrona. Coloquei meus dois filhos do lado da janela e me acomodei no
corredor. Escondi a arma embaixo da bolsa, e, concentrando-me, pus todas as
minhas energias em estado de alerta.
Um
velho casal foram os únicos passageiros autorizados a deixarem o avião. Após
duas horas de negociações, deixamos a capital de Gardel, decolando em direção ao Chile.
A
noite, trazendo em seu cortejo as estrelas, cruzava o hemisfério sul, lenta e
preguiçosa. As crianças, disciplinadas a dormir das 7 às 6h, não reclamariam
até a manhã.
Nosso
plano de comemorar o triunfo da Revolução Cubana, ficou postergado para os anos
seguintes. Os passageiros, cansados, terminaram dormindo, enquanto nós, em
estado de alerta, aguardávamos a nova
aterrissagem.
Voando,
nada poderia nos acontecer. Nunca o céu me parecera tão seguro. A próxima
parada era uma incógnita. Teriam condições técnicas para consertar o Caravelle?
Abasteceriam sem problemas? Teria a Cruzeiro do Sul autorizado o abastecimento
de combustível?
Aeropuerto
Cerro Moreno - Antofogasta. Chile.
0h17m.
Aterrizamos
e decolamos em Cerro Moreno, Antofogasta, norte do Chile.
Chile,
uma faixa no continente latino americano, beijada pelo Pacífico, coroada pelos
Andes, abriga um povo muito especial. O Chile, que “nos ha dado tanto”:
de Violeta Parra a Neruda, de Victor Jarra e Miguel Litin, ao heróico presidente
Salvador Allende, que anos mais tarde seria assassinado no Palácio de La
Moneda, defendendo seu país: “Pagaré con mi vida la libertad de mi
pueblo.”
Eduardo
Frei, o então presidente, ordenou que atendessem ao pedido dos sequestradores: reabastecer o avião.
Assim
foi; em apenas 45 minutos, alçamos vôo dos Andes, com destino ao Peru.