Com Pedrinho e Rodolfo havia traçado uma estratégia. Iria
para Cuba. Diante da situação, não poderia desistir. A organização daria
dinheiro suficiente para qualquer imprevisto. Andrada fora claro. Eu andava com
os militantes da VPR, e, a qualquer deslize, ele não hesitaria em eliminar-nos.
Não lhe faltava coragem ou determinação. Nada impediria a ação há tanto
planejada. Ele era o comandante com poderes absolutos. Andrada vinha da Linha
Vermelha, um segmento da esquerda radical. Era um guerreiro duro, inflexível.
Chegamos
a Montevidéu, ao cair da noite.
Deixaram-nos. Com carinho
antecipado fomos recebidos por um casal de Tupamaros. Uma família Tupamara.
Alegres, solidários, sofridos, amados, perseguidos, fortes e seguros.
Vez
por outra soava a sirene. Era a polícia, buscando Tupamaros. Saíamos ao parque
a caminhar, enquanto eles desfilavam pelas casas, registrando tudo e todos.
Buscavam o que eles jamais lograriam encontrar: as idéias.
Dias
de expectativa, contudo maravilhosos. Trocávamos informações durante horas,
sobre nossos países, nossos projetos de liberdade, a união da América Latina,
sobre nosso presente, sem jamais mencionar nosso futuro.
Com
os companheiros que participariam do
sequestro, mudamo-nos para um pequeno hotel, situado perto da praia, cujo proprietário era também um
militante Tupamaro.
Ía à
praia com as crianças, almoçava no Jangadeiro, restaurante brasileiro de
propriedade do ex- ministro do trabalho de Jango, segundo diziam. Caminhava
pela cidade, vez por outra fazia algumas compras, pois todas as roupas dos
meninos estavam pintadas de tinta a óleo vermelha. Roupas e cabelos. Um sufoco ir limpando aos poucos as mechas
louras emplastadas de tinta. Um transtorno causado por uma ingênua diversão,
enquanto estiveram longe de mim.
No
dia de Natal, almocei no Jangadeiros, uma excelente feijoada, para alegria dos
meninos que adoravam feijão com arroz, batatas fritas e farofa. A cidade estava
em polvorosa. Os Tupamaros tomaram um banco
de assalto, mantendo, como reféns, seus funcionários, por mais de seis horas.
Polícia e exército completamente desarvorados.
-
Como ousavam, ali, no nariz
deles, executar uma ação tremenda como aquela!?
O
povo adorava os Tupa, e silenciavam a qualquer inquirição. Heróis anônimos,
cochichavam pelas ruas.
Também
estava apaixonada pelos Tupa. Eles eram a extensão dos meus Juarezes, Moacires,
Marias, Carlos, Laras, Rodolfos, Sílvias e Pedrinhos.
Dia
30, fui ao Jangadeiros para almoçar.
Animado, o gerente nos convidou para a festa que fariam para o reveillón.
- Seu marido virá, não?
- Não, vai direto para Bariloche. Muito obrigada
pelo convite.
- Que pena! Será fantástico!
Desejei
a todos um feliz 1970.
Saí,
tentando divisar, através do mar, a minha pátria tão amada. Por quanto tempo,
ficaria longe de suas montanhas, de suas florestas, do cheiro do seu mar, do
sotaque multicolorido?
Quanto
tempo sem ver a Portela entrando impoluta na Avenida Presidente Vargas, sem
sentir a vibração da nação rubro-negra, sem ouvir o Paulinho da Viola...
Como
viver sem o Bar Luiz, o Paissandú, o
Mequinho e o Lara?... Estaria fadada a
repetir o carma mineiro: em vez de Dirceu-Marília? Melhor não cogitar sobre o
futuro. Viver apenas, intensamente, o presente. Bom para os olhos, melhor para
o coração.
Montevidéu
estava em festa com a chegada de uma nova década. Sessenta havia sido embrião e
feto. Ousou libertar a mulher, assassinar presidentes, instalar ditaduras para
sufocar as conquistas, olhar a Terra desde a Lua, ditar definições morais e
políticas, quebrar tabus. O mundo esperava um 1970, menos conturbado, o fim das
guerras, a punição dos culpados, o retorno à democracia.
A
cada primeiro de janeiro renascem nossas esperanças. Assim foi com nossos
antepassados, assim será com as novas gerações.
Seria
1970 uma década diferente de todas as outras até então vividas? Faltava um dia
para deixar a América Latina. Por quanto tempo? Meses, dias, anos?
Que futuro o futuro havia me reservado? Naquele instante, tão somente a
esperança. Era assim algo como a Terra, como dizia Gagarin, azul: a esperança
para mim é azul. Foi nesse azul que me perdi no dia 31. A princípio apreensiva, preocupada, ansiosa,
tentava conciliar o sono.
Era
difícil dormir. No dia seguinte, uma grande aventura.
Daria
certo? Sairíamos ilesos? Seria o último, o ou primeiro dia das nossas vidas...
- Você não
vai levar este casaco de peles: é um absurdo!- disse Andrada.
- Foi presente da minha cunhada, uma jóia rara para
ela!
-
Não. Não pode levar.
Perdida no armário, ficou a única lembrança trazida do
Brasil. Todo o resto da minha bagagem era novo, exceto minhas lembranças.
Adormeci inebriada de tantos pensamentos.
Com Pedrinho e Rodolfo havia traçado uma estratégia. Iria
para Cuba. Diante da situação, não poderia desistir. A organização daria
dinheiro suficiente para qualquer imprevisto. Andrada fora claro. Eu andava com
os militantes da VPR, e, a qualquer deslize, ele não hesitaria em eliminar-nos.
Não lhe faltava coragem ou determinação. Nada impediria a ação há tanto
planejada. Ele era o comandante com poderes absolutos. Andrada vinha da Linha
Vermelha, um segmento da esquerda radical. Era um guerreiro duro, inflexível.
Chegamos
a Montevidéu, ao cair da noite.
Deixaram-nos. Com carinho
antecipado fomos recebidos por um casal de Tupamaros. Uma família Tupamara.
Alegres, solidários, sofridos, amados, perseguidos, fortes e seguros.
Vez
por outra soava a sirene. Era a polícia, buscando Tupamaros. Saíamos ao parque
a caminhar, enquanto eles desfilavam pelas casas, registrando tudo e todos.
Buscavam o que eles jamais lograriam encontrar: as idéias.
Dias
de expectativa, contudo maravilhosos. Trocávamos informações durante horas,
sobre nossos países, nossos projetos de liberdade, a união da América Latina,
sobre nosso presente, sem jamais mencionar nosso futuro.
Com
os companheiros que participariam do
sequestro, mudamo-nos para um pequeno hotel, situado perto da praia, cujo proprietário era também um
militante Tupamaro.
Ía à
praia com as crianças, almoçava no Jangadeiro, restaurante brasileiro de
propriedade do ex- ministro do trabalho de Jango, segundo diziam. Caminhava
pela cidade, vez por outra fazia algumas compras, pois todas as roupas dos
meninos estavam pintadas de tinta a óleo vermelha. Roupas e cabelos. Um sufoco ir limpando aos poucos as mechas
louras emplastadas de tinta. Um transtorno causado por uma ingênua diversão,
enquanto estiveram longe de mim.
No
dia de Natal, almocei no Jangadeiros, uma excelente feijoada, para alegria dos
meninos que adoravam feijão com arroz, batatas fritas e farofa. A cidade estava
em polvorosa. Os Tupamaros tomaram um banco
de assalto, mantendo, como reféns, seus funcionários, por mais de seis horas.
Polícia e exército completamente desarvorados.
-
Como ousavam, ali, no nariz
deles, executar uma ação tremenda como aquela!?
O
povo adorava os Tupa, e silenciavam a qualquer inquirição. Heróis anônimos,
cochichavam pelas ruas.
Também
estava apaixonada pelos Tupa. Eles eram a extensão dos meus Juarezes, Moacires,
Marias, Carlos, Laras, Rodolfos, Sílvias e Pedrinhos.
Dia
30, fui ao Jangadeiros para almoçar.
Animado, o gerente nos convidou para a festa que fariam para o reveillón.
- Seu marido virá, não?
- Não, vai direto para Bariloche. Muito obrigada
pelo convite.
- Que pena! Será fantástico!
Desejei
a todos um feliz 1970.
Saí,
tentando divisar, através do mar, a minha pátria tão amada. Por quanto tempo,
ficaria longe de suas montanhas, de suas florestas, do cheiro do seu mar, do
sotaque multicolorido?
Quanto
tempo sem ver a Portela entrando impoluta na Avenida Presidente Vargas, sem
sentir a vibração da nação rubro-negra, sem ouvir o Paulinho da Viola...
Como
viver sem o Bar Luiz, o Paissandú, o
Mequinho e o Lara?... Estaria fadada a
repetir o carma mineiro: em vez de Dirceu-Marília? Melhor não cogitar sobre o
futuro. Viver apenas, intensamente, o presente. Bom para os olhos, melhor para
o coração.
Montevidéu
estava em festa com a chegada de uma nova década. Sessenta havia sido embrião e
feto. Ousou libertar a mulher, assassinar presidentes, instalar ditaduras para
sufocar as conquistas, olhar a Terra desde a Lua, ditar definições morais e
políticas, quebrar tabus. O mundo esperava um 1970, menos conturbado, o fim das
guerras, a punição dos culpados, o retorno à democracia.
A
cada primeiro de janeiro renascem nossas esperanças. Assim foi com nossos
antepassados, assim será com as novas gerações.
Seria
1970 uma década diferente de todas as outras até então vividas? Faltava um dia
para deixar a América Latina. Por quanto tempo? Meses, dias, anos?
Que futuro o futuro havia me reservado? Naquele instante, tão somente a
esperança. Era assim algo como a Terra, como dizia Gagarin, azul: a esperança
para mim é azul. Foi nesse azul que me perdi no dia 31. A princípio apreensiva, preocupada, ansiosa,
tentava conciliar o sono.
Era
difícil dormir. No dia seguinte, uma grande aventura.
Daria
certo? Sairíamos ilesos? Seria o último, o ou primeiro dia das nossas vidas...
- Você não
vai levar este casaco de peles: é um absurdo!- disse Andrada.
- Foi presente da minha cunhada, uma jóia rara para
ela!
-
Não. Não pode levar.
Perdida no armário, ficou a única lembrança trazida do
Brasil. Todo o resto da minha bagagem era novo, exceto minhas lembranças.
Adormeci inebriada de tantos pensamentos.