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NESTA TERRA, NESTE INSTANTE - 6a, parte

Setembro 1969

 Chegou a primavera e com ela Carlos. Passamos três dias felizes. O compromisso com Marcello continuava de pé.
Em novembro, Fausto seria levado para uma audiência no Forum e neste dia eles realizariam a ação de resgate. Estávamos radiantes. Carlos voltaria para nos tirar de Belo Horizonte. A organização tinha planos para nós.
Juarez e Lamarca eram contra a nossa ida para Cuba, como havíamos cogitado no início.
- Estamos montando um campo de treinamento. Você vai para lá com outras companheiras. - adiantou.
Carlos partiu, deixando-me com  renovada esperança. Sair de Minas, para começar uma nova vida em prol da revolução. Fosse qual fosse o aporte à libertação do nosso povo, era bem-vindo. Eu daria o melhor. Certa estou de que daria. Imbuída na esperança de dias melhores, encarava com mais otimismo o ostracismo.
Na  semana seguinte à visita de Carlos, veio a ordem:
- Vocês vão amanhã para o Rio, de lá para o Rio Grande do Sul. 
-          Mas, o Carlos disse que vem por estes dias.      
-          Não virá. Avaliaram que, com duas crianças pequenas, é muito  complicado.
- No Rio receberá as instruções do comando da organização.
Na noite seguinte, acompanhados por Caio, embarcamos para o Rio. Pouco falamos naquela noite. Algum segredo ele guardava. Tenso e silencioso, acariciava os meninos enquanto dormiam.
Estava preocupada: que me aguardava agora? Caio  se recusava falar. Respondia lacônico as minhas perguntas?
            - Você vai para o sul comigo?
- Não sei, no Rio saberemos. Não informaram nada a você? – perguntou.
- Disseram-me que vou para Porto Alegre.
            - Sim, eu sei.
- Vamos encontrar o Carlos?
- Não sei. 


 Amanhecia quando o comboio entrou na gare da Central do Brasil. O Rio acordou lindo. Quanta saudade! Cada pedacinho, cada esquina , a Avenida Presidente Vargas, a Perimetral, o mar, o cheiro do Rio.  Meu deus, o mar! O Rio tem o mar mais lindo do planeta. Um mar com cheiro de música, de gente. O Rio tem cheiro de felicidade. O Rio tem cheiro de vida.  E toda ela não seria suficiente para expressar tanta alegria.

- Olha o mar, Marcello! Olha, Eduardo!
- Voltamos pra casa! Voltamos pra casa! Edu, voltamos pra casa! - gritava Marcello - Olha os barcos! Quantos barcos! Olha o mar... Olha o mar...
- Não vamos para casa, Marcello. Vamos olhar o Rio. Um dia desses voltamos para casa, tá?
- Para onde vamos?  - interrompeu Caio.
- Para Copacabana, fazer hora. É muito tempo de espera, até as dez. Bom, vamos começar a caminhar um pouco.
- Como você quiser. Não conheço mesmo nada.  Só estive nesta cidade duas vezes. Quando você esteve doente, internada, e vim pegar dinheiro. - lembra? ...Quando Marcello adoeceu.
            - Foi quando Carlos assaltou um açougue para mandar o dinheiro, para pagar o hospital? Ele me contou numa das vezes em Belo Horizonte.
Começou a chover.  Entramos na Confeitaria Colombo para tomar um chá e aguardar o tempo passar.
É simples dizer o tempo passar. É tenebroso viver o tempo passar.  O Rio foi ficando murcho, triste. A chuva apertava o passo rápido. Ou porque a quantidade a jorrar pela cidade poderia ser muita, ou porque não quisesse estragar minha satisfação da volta.

Ninguém apareceu às dez. O outro horário era às 17h.
Ficar esperando num bar durante todo um dia, não seria viável. Cometeria um erro, mas ía ligar para minha família. E se os telefones estivessem grampeados? Mesmo assim, tentaria!
 - Alô!?
- Maria Helena, sou eu. Acordei com dor de dente. Você pode me levar ao consultório?
Pela entonação da voz, devia estar petrificada. Por sorte, foi bem esperta:
            - Onde você está trabalhando hoje?
- Em Copa. Espero por você perto da sua boate preferida, que tal?

Estava jogando tudo. Maria não frequentava boates. Fora apenas uma ou duas vezes, há muitos anos,  no Golden Room do Copacabana  Palace , quando ainda  namorava meu pai. Ela tinha que lembrar. Ah! Tinha...
            - Dentro de meia hora, tá bom?
-          Aguarde.

Fomos para um bar perto do Copacabana Palace.
Lá estava ela embaixo do seu guarda - chuva, parada  junto à banca de jornal. Um abraço tímido, discreto.
-          Onde estão as crianças?
-          Ali no bar.
Conversamos pouco tempo. Apenas algumas decisões.
- Vou viajar, mas está chovendo muito. Não tenho para onde ir, neste momento.
            - Uma das suas irmãs está morando na Tijuca. Faz uma semana que se mudou. Não acredito que esteja mapeada. Durante muito tempo, andaram atrás dela para saber do seu paradeiro. Faz uns quatro meses que não a procuram. Desistiram. Até porque, vocês nunca estiveram juntas.
-          Vou falar a Dona Glorinha para vir vê-los. Coitados, não vivem mais, desde que o Fausto foi preso e vocês desapareceram. A vida deles virou um inferno. A polícia não os deixa em paz. Venderam o apto das Laranjeiras e mudaram faz dois meses. Quase não nos falamos. Quando podemos, é do orelhão. Queria que você soubesse que aquele Che que o Fausto pintou para você, levei para Miguel Pereira. Está lá guardado, para quando tudo isto passar. Marcamos a noite com a Dona Glorinha? 
-          Às seis,  no Largo da Glória, pois hoje mesmo vou embora.
- Para onde?
- Não sei ainda.

Peguei o endereço da Tijuca. Em poucos minutos estava lá. Falamos muito pouco, sobre tantas coisas. Banhei a criançada, deixei tudo preparado para a partida e regressei a Copa.

O encontro foi rápido, sem grandes explicações.
- Hoje, você parte para  São Paulo. De lá, vá para Porto Alegre.

No dia 02 de dezembro, no Parque  Farroupilha, um companheiro vai recebê-la. Vá ao ponto indicado e espere não mais que 15 minutos. Aqui está o mapa do local. Decore e jogue fora este papel. Hospede - se  num bom hotel, que no mesmo dia será levada para outro lugar. Não se preocupe. Tudo está bem seguro. Lá receberá instruções. Para onde vai e o que fazer; receberá dinheiro, etc...
- Preciso de mais detalhes.
- Infelizmente não posso dar. O nome do contato é André. Aqui tem $1.000 dólares. Boa sorte.
Olhei  Caio. Sua mirada refletia um medo profundo.
- Caio vai comigo?
- Vai sozinha, companheira.
Por razões óbvias não sei seu nome, seu apelido, a cor da sua tez, seu porte. Nada de nada.
De novo a angústia saída do desconhecido. Queria voltar, pegar as crianças, sair pelo mundo. Urgia pegar os meninos.
      - Vamos Caio! Rápido, estou desesperada.

Cruzamos o Rebouças na hora do rush, com o coração em frangalhos. Subi ansiosa o elevador. Entrei. Que alívio!
- Você deve deixá-los. Acho que vocês estão indo para Cuba. - falou meu cunhado, sem ternura. O Dr. João pode cuidar deles. Ele tem dinheiro, pode lhes dar o melhor. Além do mais, o exército disse que se você se entregar, não fazem nada e te liberam imediatamente.
Ouvi as sirenes. Entendi o jogo. Tinha que agir rápido.
           - Venham Marcello e Eduardo! Pegue a bolsa, Caio!
-Espere! Não pode ir assim, isto é uma loucura!- gritou minha irmã.
Desci atropelando a escada.
- Táxi! táxi!  Hotel Glória, por favor!
Um dia escapara dessa forma. Eu sim, teria sorte duas vezes.
Chovia copiosamente quando encontramos Dona Glorinha. Quinze minutos, nada mais. Eles não podiam me trair, não me trairiam. O filho dela estava preso, selvagemente  torturado. Não entregariam as crianças. Sabia disso.  Falamos do Fausto, da prisão. Da dificuldade das visitas agora na ilha Grande, das lembranças, da despedida. Dos sobrinhos, da Leda, do Fábio. Um minúsculo recorrido pela nossa história.
Diga ao Fausto que aonde quer que estejamos, lembraremos dele com todo carinho.

Fazia-se tarde. Peguei um táxi para a Central do Brasil.
Naquele momento, estava vedado deixar  qualquer coisa  para trás, até mesmo a saudade.
Caio ficou parado com os olhos fixos na janela, sem lágrimas, sem palavras, sem despedida. O trem lentamente deixou a plataforma rumo à capital paulista.




Em São Paulo, hospedei-me no Hilton. Não podia arriscar. Faltavam 30 dias, para o ponto em Porto Alegre; decidi que viajaria na véspera. São Paulo, era uma velha conhecida, sentia-me mais segura. 

A dois dias da partida, decidi ir à rodoviária, comprar as passagens. Ônibus e trens eram os meios de transporte mais seguros, naquele momento. Por eles transitavam milhões de pessoas, dificultando a vigilância minuciosa.
Os aeroportos eram alvos fáceis. 

De repente, o inusitado. Diante de um cartaz, com as fotos dos companheiros procurados, observando curioso cada uma delas, Rodolfo! Ao lado, um soldado empunhava, arrogante, sua baioneta.

Tomada por frio e calor intensos observava, imóvel, a cena dantesca.  Que fazia Rodolfo na Estação da Luz ? Olhando tão de perto? Sua foto há muito estava estampada naquele cartaz. Sempre fora distraído!... Distraído, sim, mas essa era demais! Seria preso, diante dos meus olhos?
Some daí menino! Falei com meus botões. Peguei Marcello no colo, para fugir rápido, se o pior acontecesse.

O policial, qual boneco de cera, nem se moveu. Limitou-se a mirar com desdém. Um curioso a mais, certamente pensou, virando-se, ao mesmo tempo em que Rodolfo, balançando a cabeça se afastava, perdido em seus pensamentos: sou outra pessoa nesse retrato... certo divagava. Tentei alcançá-lo, mas o perdi-o na multidão.


Recomposta do espanto, comprei passagem para a noite seguinte, num ônibus leito, confortável para tantas horas de viagem e menos visado pela polícia.

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