-
Vou levar vocês, provisoriamente, para a casa de um companheiro; o
tempo para conseguir um aparelho mais
estável.
Ju nho 1969
O beco escuro servia de passagem para o barraco.
Chovia forte lá fora. A cidade parecia não ter cara. Também, que me importava
se ela tinha ou não uma feição própria? Que me importava esta ou aquela outra
cidade, vila ou vilarejo? Queria, sim, um pouco de solidão. Um pedacinho de
espaço para mim e os meninos. Queria chorar, sem cúmplices. Queria definir um
caminho ou pelo menos entender melhor aquele que deveria trilhar. Sei que
existem 256 caminhos, mas, não podemos escolher todos ao mesmo tempo.
A
chuva insistia em perturbar meu sono. Jamais ouvira tão perto o barulho da
chuva caindo no zinco. Estranha sensação de
liberdade. De tempo em tempo, ouvia vozes. Risos, rixas. A passagem estreita colocava os transeuntes quase em cima de nós. Pela manhã, chovia.
Chovia tanto que extrapolava meu coração. A sábia natureza aliara-se a meu
pranto para amenizar minha dor.
Chão
batido, sala, quarto, cozinha, banheiro numa mesma peça. Limpo bem limpo. José
nos atendeu afetuoso. Brincou, conversamos um pouco. Não havia muito o que
falar. Mal nos conhecíamos. O silêncio era prolixo.
Durante
uma semana choveu. Durante uma semana, nem abrimos a porta.
Como
cheguei, saí. Na calada da noite, às escondidas.
Desta
feita, para um lindo apartamento, com moradores jovens, alegres, e com um sério
problema: a empregada não podia saber de nossa presença.
Até
que conseguissem livrar-se dela, teríamos que ficar trancados no quarto. -
explicou Martha.
- Vocês podem sair à
noite. Dar uma volta pela casa, enquanto ela vai para a escola.
Mário está providenciando para que ela saia de férias. O problema são as
aulas. Tentaremos dar um jeito.
Mais
estórias, contadas no decorrer do dia. Mais cantigas, sussurradas nos ouvidos,
estavam me levando ao desatino. Os pesadelos que desfilavam intermináveis, nas
horas de sono, eram mais leves e prazerosos, do que a realidade da vigília. É
certo que as crianças eram bem pequenas, dois e três anos. Mas não o suficiente
pequenas para dormirem e ouvirem estórias. Não nutria nenhuma esperança de
saída. Até então, a cada lugar novo, piores situações.
Por
fim, embarcaram a empregada, para visitar os seus pais, sob o pretexto de que
precisavam viajar. Fomos libertados das quatro paredes.
Felicidade
geral. Respiramos tanto espaço, que caímos esgotados de liberdade.
Foi
quando a campainha tocou. Teriam esquecido a chave?
- Rapidamente abri a porta.
Diante
de mim, um jovem assustado - Martha está?
- E agora Drummond, que faço com o
seu poema? Quem é este homem? De onde ele saiu?
- Sou Welington, irmão da Martha. Você quem é?
-
Mirian.
Entrou,
acomodou-se no sofá. Onde está minha irmã? De onde você veio? Martha não disse
que tinha visitas. Cheguei hoje, estava no treinamento.
- Você não é de Belô?
- Não. Vim conhecer. Nada mais. E, você?
- Sou paraquedista. Estou na aeronáutica.
- Aeronáutica?
Neste
momento, Eduardo chamou. Eu havia parado na
metade da canção para atender a porta e ele, ainda meio adormecido,
reclamou por ela.
- É uma criança?
- São duas. - respondi
Nessas
alturas, melhor a verdade do que colocar tudo a perder.
- Seu marido também está aí?
- Não. Está em Madri, a negócios. Aproveitei para
vir conhecer Belo Horizonte.
-
Estranho, Martha nunca ter falado de vocês... Somos tão apegados!
- Com toda
certeza terá falado, mas não despertou seu interesse e você simplesmente
esqueceu.
- Difícil. Continuo achando
estranho... Você não está fugindo da polícia, está? Minha irmã é meio louca, e pode estar
escondendo você.
-
Maluquice! Como você viaja! De
que polícia eu iria fugir? Os mineiros são tão desconfiados, que parecerem que
tomaram LSD!
Aquele
rapaz perguntava demais. A situação estava ficando complicada e eles não
chegavam. Da empregada, tínhamos nos livrado e veio o “projeto” de militar.
- Amanhã vou treinar, saltar de pára- quedas. Tenho
que estar descansado. Acho que vou indo.
Se
este infeliz comenta que nos viu, estamos fritos. Olhei fixamente para ele,
fixei todas as minhas energias em suas pernas, desejando que, ao saltar,
sofresse uma fratura, fosse engessado e
me esquecesse.
Naquela
noite, dormi com as crianças no carro do Afonso, numa rua deserta. Dias depois,
soube da novidade: Wellington quebrara a perna, estava hospitalizado.
Amanhecia,
quando chegamos à casa de Afonso. Uma revoada de meninos descia as escadas
apressada, todos falando ao mesmo tempo. Uns amarrando os cadarços, outros
prendendo os cabelos. Sentaram- se à mesa para um rápido café da manhã, senão perderiam a
escola.
Quanta
alegria, quanta vida divisei naqueles olhinhos.
Mara, a mãe linda e suave. Afonso, o paizão. Patrícia, Marina, lindas de
morrer.
No
almoço, alegria geral. Crianças novas na casa, aquela comida gostosa.
Um
feijão daqueles! Colocado bem cedo no fogão, temperado com pedacinhos de
toucinho, horas antes do almoço. Coisa da cozinha mineira. - segredou Mara.
Na
parte da tarde, apareceu um companheiro com uma novidade que iria até hoje
marcar minha vida. Um disco compacto de
música cubana.
- Um companheiro trouxe de Cuba. É lindo, super revolucionário. Música de
protesto. Vamos ouvir!
-
É perigoso. - expôs Mara.
-
Ouviremos no cantinho. No chão, tá bem?
-
Bem baixinho. - suplicou.
“
Se quebró
la
cáscara del viento al sur
y
sobre la primera cruz
despierta
la verdad” .....
Fusil
contra Fusil...
Abaixados,
com o coração em festa, a voz de Silvio Rodriguez, o compositor deste e de
muitos séculos, percorreu minhas veias e se escondeu, com tantos outros
trovadores, pintores e poetas em um dos
tantos compartimentos que trago
reservado em meu coração para armazenar
todas as minhas alegrias.
Tristezas,
jogo-as distraidamente na corrente venosa, para alcançarem o mais rapidamente a atmosfera e se perderem
para sempre na poluição das estradas.
Em
poucos dias, estava instalada em um
aparelho, junto com um companheiro que faria de conta ser meu marido: Caio.
Entrava no adiantado da noite, dormia sem dizer
palavra e saía aos primeiros raios do sol. Sempre calado, como chegara.
Os
dias aos poucos se acomodavam. Ora vinha um companheiro, ora outro, ocasiões em
que aproveitávamos para discutir o futuro de todos e elaborar planos.
Devagar
ía participando de novo da organização. Sempre na logística. Minha condição de mãe
era uma grande impossibilidade. Fiz desde bolsas de couro, para arrecadar
dinheiro, a silenciadores, para serem usados nas ações armadas.
Caio
foi se acercando. Passávamos as noites lendo, discutindo política nacional e
internacional. Fizemo-nos amigos.
Eduardo foi se apaixonando e, pela primeira vez, falou: papai.
Marcello,
sempre arisco, olhava Caio com simpatia, sem deixar de contar os dias em que
seu pai sairia da prisão para vir brincar de novo.
Por
vezes, corria para pegá-lo no terraço,
cantando a peito aberto, bracinhos erguidos para o céu ...
Che Guevara não morreu... Lá- rá-rá... Che
Guevara não morreu!
- Marcello! Vem cá!
O Che não morreu. Por isto você não precisa estar falando aí fora, tá
bem? Senão, o que vão pensar? Que não lemos jornais, não vemos tevê? - objetava apavorada de que alguém escutasse.
- Aqui ao lado, mora o chefe de polícia de Belo
Horizonte. - advertia Caio.
Marcello
precisa esquecer isso, pensava.
Aliada
às frias noites Belo-Horizontinas, estava a incerteza dos dias futuros.
Conscientemente, dava-me um tempo, para planejar meu futuro.
A
organização estava rachada. Isolada em Minas, não sabia de que lado ficaram
meus companheiros. Juarez, Carlos, Rodolfo (o famoso Listz) e outros mais.
Eram
da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e a ela unira-se a Var- Palmares; mas
no congresso de julho, dividiram-se novamente. De que lado eu ficara? Ninguém
me respondia. O contato que eu tinha era com os companheiros que sabiam do meu
aparelho. Eram poucos.
Notícias
do Fausto, nenhuma. Apenas soubera que estava vivo, preso na PM. Carlos
desaparecera naquele sábado de maio. Meses sem nenhuma novidade. Estariam
vivos? Saberiam do meu paradeiro? Perguntas sem possibilidade de respostas.
Tinha que encontrar uma saída. Cláudia, também da VP, estivera conosco em julho, e contara-me todas
essas novidades. Regressou ao Rio, ou talvez a São Paulo. Nem deus sabe. De
Ignez nunca mais ouvi falar, desde nossas longas conversas nas primeiras noites
em Belo Horizonte.
Ouvi
falar dela muitos anos depois, quando,
corajosamente, atirou-se na frente de um ônibus em Petrópolis, ao ser conduzida
para a morte.
Ignez
teve, como poucos, a coragem de denunciar o assassinato de alguns companheiros,
como Palhano e a traição do Cabo Anselmo.
A
cada pergunta, a resposta seca e sem comentários.
-
Temos muitos problemas. - concluíam.
Saberia
Juarez desta situação? Onde estariam eles?
O
tempo, pendurado nas asas do vento, desaparecia por trás dos dias e meses, sem
deixar nenhum rastro de esperança. Belo
Horizonte era perigoso. Cada chofer de táxi, uma ameaça a nossa segurança.
Qualquer gesto em falso poderia significar a nossa prisão. Parecia que todos cooperavam com a polícia!
Enquanto
mais alguns ajudavam com informações, outros tantos surgiam dispostos a dar
suas vidas pela liberdade.
A
cada esquartejamento, novos Tiradentes surgiam de suas montanhas.
Marcello
insistia no retorno do pai. Queria explicações contundentes:
- Por que tá preso, mamãe? Por quê?
- Ele estava trabalhando para que todos os
meninos possam ter comida. Muitas
crianças não têm o que comer, não têm cama para dormir!
- Os meninos não têm comida?
- Nem todos. A maioria vive nas ruas, com frio,
fome, sem livros para ler como os da mamãe.
- Por que não comem?
- Porque a comida é só para quem tem dinheiro. Ontem
não fomos ao mercado comprar comida? Lembra? Compramos biscoitos e frutas. O
Edu não estava quase chorando porque estava com fome?
- Tava. Quem não dá dinheiro para eles?
- As pessoas que mandam no Brasil.
- Por quê?
- Porque são muito egoístas e não gostam do Brasil.
Gostam de dinheiro. Só de dinheiro. Não gostam nem de seus filhos.
- Dinheiro
não é pra gostar. Eu quero meu pai.
- Sabe, Marcello, estamos em guerra. Nós mesmos
estamos aqui, escondidos, porque se o governo nos pega, vamos presos também.
- Por que a gente queria dar comida?
- Sim.
- E o tio Carlos? Cadê o tio Carlos?
- Não sei, meu anjo. Anda por aí, lutando contra a
fome e a miséria.
- Eu quero ele. Eu quero ir pro Rio...
O
porquê deu lugar à dor. Marcello já pouco comia, chorava durante a
noite, dormindo. Até que a febre apareceu. Alta, muito alta.
Médicos,
remédios, psicólogos, para chegarmos à conclusão de que seria necessária a presença
urgente de Carlos.
Carlos
era procurado em Minas. Tinha suas fotos estampadas nas rodoviárias e aeroportos. Como vir a Minas,
sem correr perigo? Sua vinda estava fora de cogitação. Meu filho definhava aos
poucos. Estórias, atenção extrema, total carinho, todo o meu amor não substituíam
a angústia de querer o Fausto de volta, de regressar a casa. Seu corpinho
começou a se encher de chagas, menos as mãos e o rosto. Estávamos perplexos. Como resolver essa situação?
Como salvá-lo? Afonso passava os dias ao
seu lado, brincando, dando-lhe carinho. Até barba deixou crescer, para simular
a imagem paterna.
Nada
demovia aquela criança do trauma da perda sofrida a cada semana, a cada mês, a
cada e dia.
Caio
viajou ao Rio para localizar Carlos. Regressou abatido. Carlos viajara com
Lamarca, sem data de regresso. Quem de nós tinha data de retorno? Quem de nós
tinha, naquele momento um porto seguro?
Deixou
apenas a notícia: Marcello precisa de você.
Agosto 1969
Numa
manhã gloriosa, com a cara metida na janela, sorrindo matreiro, encontrava-se
Carlos.
Os
quatro, apertados num só abraço, nos perdemos aos beijos. Desta vez, choramos
de tanta felicidade.
Beijou
milhões de vezes as bochechas ardentes de Marcello; devagarinho tal qual um
anjo, foi amainando aquela dor. Banhando-o com permanganato, secou cuidadoso as
feridas.
Aos
poucos, Marcello foi se entregando, até alcançar a cumplicidade. Lápis e papel
em punho. Croquis, inúmeros croquis. Combinaram a fuga. Fizeram, durante horas,
o roteiro. Homens armados. Camburão. Polícia Federal. Avenidas, árvores. Homens
em posto de comando, soldados em postos de ataque. Por fim, a fuga e a
liberdade.
- Assim será, meu amor. Vou tirar seu pai da cadeia.
Vamos para uma casa onde você tenha seu quarto para brincar com o Edu, ir à
escola curtir com seu irmão a alegria
que a vida vai te proporcionar. Você só tem que ter paciência. Temos que
esperar a hora e o dia certo para a ação,
tá combinado?
Entregou
a Marcello um desenho, dobrado, que ele guardou com todo carinho no bolsinho da
calça. Era seu segredo e sua cura.
Naquele
dia, a febre baixou repentinamente. Nos dias que se seguiram, três ou quatro
dias depois, todas a feridas cicatrizaram. Carlos se despediu, prometendo
voltar.
Desde
maio, não sabia de nosso paradeiro. No racha, ele, Juarez, Maria do Carmo e os
demais ficaram na VP. Eu, sem saber, isolada do mundo e de todos, estava com os
da VAR- Palmares – (Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares).
- Imagina, não sabia de nada. Por este motivo
demoraram tanto a me encontrar. - comentei com Carlos.
- Exatamente.
-
Fique quieta que eu volto pra tirar você daqui.
Carlos
nunca havia falhado, não seria agora. Como Marcello, esperaria tranquila o seu
regresso.
Depois
da vinda de Carlos, nunca mais falaram nada. As reuniões, antes quase que
diárias, foram escasseando. Caio pouco falava. Embora, na clandestinidade da
clandestinidade, meus neurônios sempre
estiveram ativos. Sabia pensar.